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Quase um Século de imagens da memória de Nanni

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São Paulo – Beto Brant, que foi seu aluno na Faap, Fundação Armando Álvares Penteado, define-o como um dândi e de Rodolfo Nanni se poderia dizer que é um cavalheiro na melhor tradição inglesa – um gentleman. Não é a menor das surpresas de Quase Um Século, a viagem de Nanni em suas lembranças. Sob o título, um subtítulo – Imagens da Memória. Nanni conta tudo? “Não é uma autobiografia”, ele adverte o repórter. Nanni reflete. O gentleman nasceu numa modesta família de imigrantes italianos. O pai tinha um armazém de secos e molhados. A casa era bem situada, no que é hoje uma área nobre de São Paulo – a Rua Oscar Freire.

O primo e padrinho foi um escultor importante – Victor Brecheret. Talvez por isso o garoto Rodolfo conheceu/conviveu com figuras míticas do Modernismo. O pai apoiou-o quando resolveu estudar pintura em Paris, mas Nanni conta que a ida para a França foi meio uma fuga. Ele amava uma pintora, Tereza, cujo pai era ligado a figuras importantes da era Vargas.

O pai também era contra a ligação da filha com o garoto paulistano. Até a polícia política entrou em cena. Foram para a França, onde Nanni se converteu ao cinema.

O gentleman conviveu a vida toda com a dificuldade. Tem projetos que não saem por falta de recursos. Sua última entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo foi quando buscava patrocínio para O Olhar Antropófago. O filme sobre a modernista Tarsila do Amaral está empacado, bem como A Cidade Ilimitada, sua ficção sobre São Paulo. Nanni pode ter vivido em Paris e Roma, pode ter viajado o mundo, mas ama sua cidade, que quer mostrar na tela numa ficção que reúne diversos personagens – o milionário, o intelectual, o operário, o jornalista e um sujeito que não sabe o que quer. Como todo roteiro de Nanni, o de Cidade Ilimitada – São Paulo sem limites – baseia-se em suas vivências, no que ele aprendeu sobre o homem e o mundo.

Quase Um Século começou a nascer há um par de anos, talvez um pouco mais. Já que os filmes não saíam, Nanni começou a redigir suas memórias. “A lembrança é como um novelo”, ele diz. “Quando a gente começa a desfiar, não para mais.” Amigos, inclusive um editor, Marcelo Araújo, o incentivavam. A mulher foi fundamental no processo – Anna Maria Kieffer.

“Marcelo sempre teve uma ligação muito forte com as artes visuais. Anna fez a cabeça dele, relatando minha experiência com os modernistas. Marcelo nos orientou a inscrever o projeto de livro na Lei Rouanet. Eu escrevia com calma, sem compromisso. De repente, ele veio com a nova de que o livro já tinha patrocínio e teria de sair logo.”

Talvez seja a única crítica que se possa fazer a um livro tão caprichado quando Quase Um Século. Capa dura, papel bom, riquíssimo em ilustrações. Beto Brant, em seu depoimento sobre o antigo professor, diz que a força do cinema está em nos libertar do inexorável avanço do tempo. Ele chega a dizer que Nanni, em O Retorno, de 2008, cria uma percepção mágica do tempo. Essa mesma magia se manifesta no começo do livro, na história da família, do bairro, dos amigos. Mas, de repente, e talvez pela necessidade de concluir o livro, Nanni meio que atropela a elegante calma de sua narrativa.

Esse homem teve o que se pode definir como uma vida notável. Foi aluno de Anita Malfatti, Axl Leskoschek e Arpad Szenes, colega de Carlos Scliar e Mário Gruber. Em Paris, participou da Associação Latino-Americana e conviveu com Jorge Amado, Pablo Neruda e Nicolás Guillén. Frequentou o IDHEC, o Instituto de Altos Estudos Cinematográficos. Na Itália, ligou-se ao grupo do neorrealismo, foi amigo de Cesare Zavattini e Sergio Amidei.

De volta ao Brasil, no começo dos anos 1950, fez um filme mítico – O Saci, adaptado de Monteiro Lobato. Seu assistente, um certo Nelson Pereira dos Santos, fez a carreira que se sabe, ajudando a fundar o Cinema Novo.

Nanni não foi apenas testemunha das mudanças que mudaram a face do País. De volta da Europa, frequentava um bar da Avenida Angélica em que seus companheiros de mesa eram Thomas Farkas e Fernando Henrique Cardoso, com a namorada, Ruth. Discutiam o Brasil, que queriam mudar. Nanni fez mais um filme mítico nos anos 1950, O Drama das Secas, tema retomado em O Retorno.

O encontro com Josué de Castro, o geógrafo da fome, foi decisivo. Pesquisando a miséria no mundo, fortaleceu as convicções que sempre o levaram a contestar a desigualdade social.

Aos 80 anos – nasceu em 1924 – , nunca deixou de lutar pelo Brasil, e pelo cinema brasileiro. Como imagens na memória do autor, o livro resgata vários desses momentos. Para o cinéfilo, é fascinante ouvir os relatos de Nanni sobre grandes artistas, desde uma estrela como Lucia Bosè a diretores como os italianos Pier-Paolo Pasolini e Bernardo Bertolucci e os brasileiros Walter Hugo Khouri e Rubem Biáfora. Esse último, Nanni visitava na antiga redação do Estado. Sua emoção – no começo de dezembro, no lançamento de Quase Um Século, ficou mais de quatro horas dando autógrafos. “Não sabia que era tão querido”, diz, com modéstia. Querido e importante, Nanni é mais que parte da história. Ele é a História.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.