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Renascer em Berlim

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Foram 12 filmes brasileiros em Roterdã, são 19 aqui na Berlinale, isso sem falar na projeção internacional – com direito a prêmios importantes – que a produção cinematográfica nacional logrou no ano passado. Alvo de uma batalha contra o governo, que corta subsídios, ameaçando estrangular a produção, o cinema brasileiro tenta se manter firme. A coletiva de Todos os Mortos em Berlim foi prova disso.

Ao ser anunciado seu nome, o codiretor Caetano Gotardo afirmou: “É importante destacar que não somos só nós na competição. São 19 filmes que mostram a diversidade e a pujança do cinema brasileiro. Somados ao sucesso de produções, o cinema mostra que tem todas as condições de prosperar no Brasil. O que não está certo é virar alvo de perseguição, de tentativas de desmantelamento, de fake news. Nós só queremos seguir produzindo e vivendo da nossa produção”.

Somente a partir desta segunda, 24, quando estarão liberadas as críticas, será possível avaliar o impacto de All the Dead Ones – título internacional – aqui na Berlinale. Muita gente saiu durante a projeção de imprensa, mas os que ficaram até o fim concederam ao filme mais do que aplausos protocolares.

Todos os Mortos é obra de dois autores talentosos – Gotardo e Marco Dutra. O filme conta uma história de época, que começa no Brasil pós-Abolição da Escravatura e Proclamação da República. Uma família aristocrática falida tenta se ajustar aos novos tempos. A senhora está doente, desistindo de viver, e uma antiga escrava, que permanece agregada na fazenda, é chamada para trabalhar na cidade. A convivência torna-se impossível. Uma das filhas, Ana/Carolina Bianchi, tem visões de fantasmas que convivem no universo familiar. Pergunta à vizinha (a mítica Leonor Silveira, dos filmes de Manoel de Oliveira): “A senhora está viva?”.

Esse projeto sempre esteve presente, desde que Dutra teve a primeira ideia – em 2012. “Queria refletir sobre a permanência de velhas estruturas na sociedade brasileira. As desigualdades do presente são a consequência de questões que não foram resolvidas no passado.”

Para tornar transparente o conceito, o filme recorre a uma ideia audaciosa de mise-en-scène. Apesar do cuidado com a cenografia e os figurinos, as externas são filmadas na São Paulo atual, com os ruídos da metrópole. O efeito pode ser um tanto desconcertante, mas é intencional. “Não foi por medida de economia – é conceito mesmo”, diz Dutra.

Da mesma forma, a interpretação não naturalista. Ao abordar fantasmas que permanecem entre os vivos, o filme poderia seguir o gênero de O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan – tem até um menino, como nesse filme. Seria coerente com o cinema de Marco Dutra, de filmes como As Boas Maneiras. Mas ele não segue esse caminho. “Seria bom se fosse um filme de gênero”, reflete a atriz Clarissa Kiste. “A gente poderia ver o filme como ficção, pura e simples. Não é – é a realidade brasileira, os nossos fantasmas.”

Assim como os ruídos, a música é muito importante. Ana, a que vê fantasmas, toca piano, evocando uma tradição europeia. Iná, a ex-escrava que tenta restituir sua família, canta em iorubá. É advertida por Clarissa, que faz a filha freira, Maria, por frequentar o candomblé. Mawusi Tulani é quem faz o papel. Ela irrompe no filme como a voz da ancestralidade. “Como atriz negra, é um compromisso muito grande fazer um filme como esse. Num mundo em transformação, Iná não se cala mais. Isso tem a ver com um movimento muito ativo de afirmação dos negros no Brasil atual. Temos pensadores e pensadoras que refletem sobre tudo o que se passa no Brasil. Resgatar nossa herança africana é mais que importante. E temos de lutar contra o massacre que as populações negras de jovens sofrem nas periferias brasileiras.”

Com absoluta clareza, e rigor erudito, o compositor Salloma Salomão falou do cruzamento entre a música brasileira e as tradições da cultura africana. Arrematando, a produtora Sara Silveira reafirmou a importância da produção cinematográfica brasileira. “É cultura, é informação, é atividade econômica que gera empregos.”

Repercutiu a fala de Kleber Mendonça Filho, diretor de Aquarius e Bacurau, que integra o júri presidido pelo ator Jeremy Irons. “A produção está sendo sabotada. E nós, como classe, temos de lutar contra isso.” Leonor Silveira: “Venho de Portugal, um país pequeno, com uma produção também pequena, mas relevante. Oliveira encarava o cinema como necessidade vital. Esses 19 filmes brasileiros que cá estão são um recado do festival. O cinema brasileiro é importante demais para ser condenado à morte”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.