A série “It: Bem-Vindos a Derry” surge como uma afirmação contundente de que o terror televisivo ainda pode surpreender e expandir universos consagrados sem se apoiar apenas na nostalgia.
Em oito episódios, a produção da HBO Max entrega uma das experiências mais impactantes do gênero no ano, ao revisitar a cidade de Derry décadas antes dos eventos conhecidos. A série entende que o medo não nasce apenas do monstro, mas do ambiente que o permite existir.
A ameaça que paira por décadas
Mesmo com o público já ciente do destino da cidade e da natureza cíclica da ameaça, a narrativa consegue criar envolvimento genuíno com seus personagens. Há uma sensação constante de tragédia anunciada, mas isso não diminui o impacto emocional – pelo contrário, deixa tudo mais intenso.
Cada escolha e cada tentativa de sobrevivência das crianças carregam peso, porque sabemos que Derry é um território condenado, dominado por uma Coisa que vai além do palhaço medonho, mas uma entidade interdimensional ancestral que se alimenta do medo e da carne, e, para isso, se manifesta através das formas mais cruéis e imprevisíveis possíveis.

Curiosamente, a série entende que Pennywise não precisa estar em cena o tempo todo para dominar a narrativa. Durante boa parte da temporada, sua presença é sentida mais do que vista. Quando o palhaço finalmente assume sua forma mais reconhecível, o impacto da cena é arrebatador.
Sua aparição reafirma por que Pennywise se tornou um dos ícones mais importantes do terror moderno, e aqui ele está ainda mais perverso e assustador, do mesmo jeito que ainda consegue ser debochado e carismático.
A mitologia da entidade também é um dos grandes destaques. Ao explorar não apenas a criatura cósmica, mas também sua face humana, Bob Gray, o roteiro adiciona uma camada perturbadora à história.
É impossível não destacar o ator Bill Skarsgård que, mais uma vez, entrega uma atuação impressionante, e mesmo sendo sua terceira vez interpretando o vilão, é difícil não enxergar este trabalho na série como o mais completo de sua carreira até agora.
Outro grande acerto da obra está na forma como ela conecta o universo de Stephen King. A introdução de um jovem Dick Hallorann, personagem de “O Iluminado” e “Doutor Sono”, é mais do que “fan service”, já que suas habilidades psíquicas tem muito propósito dentro deste novo contexto que nos é apresentado. Além disso, a interpretação com intensidade e sensibilidade de Chris Chalk roubou a cena várias vezes.
O passado de Derry ainda tem muito a revelar
Sentimos Derry mais como um organismo vivo, onde o mal se manifesta tanto na entidade sobrenatural quanto nas ações de seus próprios habitantes. Episódios como o do Clube Black Spot são sufocantes, construídos com uma direção que provoca desconforto físico e emocional ao expor o ódio humano que existe ali e que funciona como uma extensão da influência de Pennywise.
Ainda assim, é nesse ponto que a série tropeça levemente. A abordagem do racismo estrutural, embora pertinente e necessária, por vezes perde força ao priorizar conflitos individuais em detrimento da dimensão coletiva da tragédia, diluindo o impacto que este momento poderia ter e ser ainda mais devastador.

Algumas fragilidades também surgem na construção de certos personagens. Nossa suposta protagonista Lily, embora carismática, acaba ofuscada por subtramas mais consistentes e atuações coadjuvantes mais marcantes. Já figuras como o General Shaw parece funcionar em certos momentos apenas como uma mera engrenagem do roteiro. Apesar disso, os deslizes não comprometem o conjunto.
Não posso deixar de citar o elenco infantil, logo nos episódios iniciais, personagens como Teddy, Phil, Susie e Matty rapidamente conquistam o espectador, apenas para terem seus destinos atravessados por escolhas sombrias e que deixam claro que a série não joga no seguro.
Em paralelo, Marge, Rich, Ronnie e Will permitem que criemos vínculos reais com seus arcos. Torcemos por eles, sofremos com suas perdas e nos empolgamos ao perceber como suas relações ecoam o Clube dos Perdedores que já conhecemos.
“It: Bem-Vindos a Derry” prova que não é um projeto oportunista, mas uma obra pensada com muito cuidado, respeito ao material original e coragem criativa. Ao encerrar sua primeira temporada, a série entrega respostas importantes sobre o passado da cidade, ao mesmo tempo que prepara o terreno para os ciclos anteriores já anunciados.
Ao expandir mitologias, aprofundar traumas e desafiar o espectador, a produção é um banquete sombrio para fãs de Stephen King e deixa a certeza que ainda há muito horror enterrado sob as ruas de Derry, esperando para despertar novamente.