
Já disponível na íntegra na HBO Max, a minissérie “Ângela Diniz: Assassinada e Condenada” reconstrói um dos crimes mais emblemáticos do Brasil para expor algo ainda mais perturbador do que o assassinato em si: a estrutura machista que permitiu que a vítima fosse julgada, humilhada e condenada no lugar de seu algoz.
Ambientada nos anos 70, a produção de seis episódios dialoga com o presente, em um país que segue acumulando números alarmantes de feminicídio, provando que o tempo passou, mas o problema persiste.
Liberdade feminina é provocação social?
Interpretada pela incrível atriz Marjorie Estiano, Ângela surge como uma mulher que ousou viver fora dos padrões, se separando quando isso ainda era tabu, vivendo relacionamentos intensos, frequentando festas onde flertou, bebeu e experimentou a vida com liberdade.
A obra não busca santificá-la nem reduzi-la a estereótipos. Ao contrário, apresenta uma mulher complexa: muito afetuosa com a única filha (na vida real, era mãe de três) e generosa como amiga, mas que, infelizmente, era constantemente punida por não aceitar o papel que a sociedade esperava dela.

O ciúme de Doca Street, vivido por Emílio Dantas, surge aos poucos, disfarçado de cuidado – um controle pintado de amor. Aos poucos, vamos percebendo como os comportamentos possessivos de Doca vão se normalizando até se tornar violência aberta contra Ângela. Esse crescendo dramático é um dos maiores acertos da minissérie.
Os episódios finais concentram a parte mais fiel e revoltante do caso. O julgamento de Doca Street é tão absurdo que parece ser muito mais um grande espetáculo de teatro do que um verdadeiro tribunal.
Sob a condução de um advogado interpretado pelo veterano Antônio Fagundes, Doca assume o papel do “homem apaixonado”, enquanto Ângela é desconstruída moralmente das formas mais degradantes possíveis, causando revolta em qualquer um.
Cada argumento reproduz fielmente a barbárie histórica, causando desconforto justamente por ser real, afinal de contas, como uma mulher desarmada é morta por vários tiros na cabeça pode ser considerada culpada de um crime?
Um legado que ainda cobra respostas
Baseada no podcast “Praia dos Ossos”, a narrativa conduz com paciência o relacionamento entre Ângela e Doca Street. A direção entende que relações abusivas raramente começam de forma explícita, e o roteiro deixa claro que, dentro da lógica machista, a liberdade feminina sempre foi confundida com culpa.
A direção de arte e a reconstituição de época impressionam, e o ritmo controlado garante peso a cada cena.
A produção é necessária por escancarar como a violência contra a mulher, infelizmente, é sustentada por discursos, leis e julgamentos que sobrevivem ao tempo.
Em um país onde a tese da “defesa da honra” só foi considerada inconstitucional em 2023, revisitar essa história é uma forma de resistir ao esquecimento e recusar a normalização de crimes que tiraram a vida de várias mulheres, antes e depois de Ângela Diniz.