A cena que se repete no interior de Jaguaré — município no Norte do Espírito Santo, onde 78% das propriedades são de agricultura familiar, segundo o Incaper — mostra um campo que muda sem romper com suas raízes. 

Ali, a rotina rural deixa de ser apenas sinônimo de sol forte, enxada e jornadas exaustivas. A chegada de jovens capacitados, aliados a novas tecnologias e formas de gestão, vem moldando um cenário em que empregos verdes, produtividade e preservação caminham lado a lado.

Família Biancardi cultiva café e pimenta-do-reino em Jaguaré e está na quinta geração. Foto: Reprodução/TV Vitória

Nesse contexto, a sucessão familiar, antes vista como um desafio para a sobrevivência das pequenas propriedades, passa a ser um mecanismo essencial para preservar a economia local, fortalecer a produção de alimentos e manter vivas histórias que sustentam o campo capixaba há gerações.

Um exemplo está na família Biancardi, que hoje chega a quinta geração na lavoura e vive, no cotidiano, o que especialistas apontam como o futuro da agricultura.

Um campo que se transforma com quem fica

Para o engenheiro agrônomo e professor da Faesa Renan Queiroz, a permanência dos jovens no campo deixou de ser um fenômeno isolado e se tornou uma tendência impulsionada pelas tecnologias e pelas novas oportunidades de formação.

O professor Renan Queiroz acredita que a sucessão familiar garante uma agricultura sustentável. Foto: Reprodução/TV Vitória

Antes, os proprietários rurais incentivavam os filhos a estudarem para ficarem na cidade porque a propriedade era vista como um lugar de sofrimento. Hoje, com a tecnologia, a família se transforma em uma empresa rural.

Renan Queiroz.

Segundo Queiroz, essa mudança garante não apenas renda, mas também qualidade de vida semelhante a dos grandes centros: “O jovem entende que pode trabalhar no campo com acesso às tecnologias, aumentar a produtividade e ainda preservar o meio ambiente”.

Para o professor, essa combinação é o que mantém viva a sucessão: “Se os filhos não permanecessem na propriedade, isso tudo tenderia a acabar. A terra seria vendida, as memórias desapareceriam. A sucessão mantém viva a história”.

Sucessão familiar garante estilo de produção que fortalece a segurança alimentar. Foto: Canva

Ele lembra ainda que políticas públicas que incentivam a compra de produtos da agricultura familiar, especialmente para escolas e outros órgãos públicos, reforçam esse ciclo e garantem segurança alimentar ao Estado.

“Manter a sucessão é garantia de alimento. Se houver ruptura desse sistema, o impacto será sentido no preço, na oferta e na mesa das famílias”, afirma.

Jaguaré: economia moldada pela agricultura familiar

Com forte vocação agrícola, Jaguaré se consolidou como polo do café conilon e de outras culturas, como pimenta-do-reino, em um modelo de produção que estrutura a economia e mantém tradições locais. 

Jaguaré se destaca pela produção de café conilon. Foto: Canva

A predominância das pequenas propriedades — que representam quase quatro em cada cinco estabelecimentos rurais — faz do município um retrato vivo da importância da agricultura familiar para o Espírito Santo.

Nessas áreas, sustentabilidade e geração de renda caminham juntas, ainda que desafios como custo de produção, escassez de mão de obra e vulnerabilidade climática façam parte da rotina.

É nesse cenário que se encaixa a trajetória da família Biancardi: marcada por esforço, permanência e adaptação.

Uma história de 100 anos na terra e cinco gerações no mesmo solo

A história começou em 1984, quando o patriarca Agenor Biancardi deixou o Sul do Estado, mudou-se para Linhares e decidiu garantir que cada um dos dez filhos pudesse seguir na agricultura. 

A estratégia foi simples e visionária: cada vez que um filho casava, ele comprava três alqueires — cerca de 15 hectares — em Jaguaré, e entregava como presente de início de vida. Assim, todos tiveram terra, renda e identidade profissional.

Hoje, aos 94 anos, Agenor já não está mais “na linha de frente”, como ele mesmo diz, mas segue orientando filhos, netos, bisnetos e até um tataraneto de apenas sete anos.

Agenor Biancardi, de 94 anos, é patriarca da família que está na quinta geração de agricultores. Foto: Reprodução/TV Vitória

“Comecei do nada, do zero”, relembra. “Era tudo na enxada, na foice, no machado. A gente chegava em casa cansado, mas papai ainda dizia: ‘Agora vamos rezar o terço’. Hoje, agradeço muito a Deus. Tenho orgulho da família”.

O agricultor caminhou por um percurso de dezenas de compras e vendas de pedaços de terra até formar uma área expressiva. “Quando cheguei nos 30 alqueires, dei um quarto e meio para cada filho”, conta. “Eles começaram a vidinha e foram comprando mais”.

O resultado, hoje, é uma rede de propriedades administradas de forma conjunta, onde cada geração tem seu papel.

O bisneto que representa o novo campo

Alexandre Biancardi, de 19 anos, é o rosto da nova geração da agricultura familiar. Formado técnico em agropecuária e estudante de Agronomia, ele assumiu, desde o fim do ano passado, mais responsabilidades no manejo e na gestão da propriedade rural da família.

“Sucessão funciona assim: você começa devagar, mas cada dia vai pegando prática e responsabilidade”, explica.

O jovem divide decisões com os familiares — um arranjo de gestão compartilhada que se tornou rotina nas empresas rurais familiares. A dinâmica é clara: o pai cuida da área burocrática, o tio coordena o plantio, e ele acompanha de perto os colaboradores, cerca de nove trabalhadores fixos, variando conforme a época da safra.

Alexandre leva para o campo, diariamente, o conhecimento teórico da faculdade. “Aprendo, na quinta, e na sexta, já aplico na lavoura. Você volta com outro olhar”, diz.

Sobre o papel das gerações, Alexandre resume:

Aos 19 anos, Alexandre Biancardi estuda Agronomia e não pensa em deixar o campo. Foto: Reprodução/TV Vitória

Vovô tem a experiência grandiosa dele. Meu pai tem a dele, e eu venho com as novidades. A gente conversa, testa e decide junto. Isso dá certo porque existe respeito.

Alexandre Biancardi.

A família produz café conilon, há mais de um século, e pimenta-do-reino, há quatro décadas. Hoje, a produção média é de 4 kg de pimenta por planta e cerca de 85 sacas de café, por hectare, na safra 2024/2025 — números que sustentam a renda e abastecem atravessadores e exportadores da região.

O jovem garante que não pretende deixar o campo: “Fui criado aqui e aqui pretendo continuar. É minha vida”.

A sucessão como base de empregos verdes

O professor Renan Queiroz destaca que a sucessão familiar está diretamente ligada ao avanço dos chamados empregos verdes — funções voltadas à preservação e regeneração ambiental, que ganham espaço diante das mudanças climáticas e da necessidade de produção sustentável.

Segundo ele, jovens como Alexandre conseguem implementar tecnologias que tornam a lavoura mais eficiente e menos agressiva ao meio ambiente. “Isso contribui para aumentar a produtividade mesmo preservando. É agricultura sustentável, é emprego verde”, explica.

Ao mesmo tempo, a permanência das famílias no campo garante:

Pimenta-do-reino também é cultivada em Jaguaré. Foto: Canva
  • segurança alimentar,
  • fortalecimento da economia local,
  • manutenção de práticas sustentáveis,
  • preservação da biodiversidade e do patrimônio genético.

Trata-se, portanto, de um modelo em que tradição e tecnologia não se anulam — se complementam.

Tradição, tecnologia e futuro

A história dos Biancardi sintetiza o movimento que se espalha pelo interior capixaba: jovens qualificados assumindo posições de liderança, propriedades familiares modernizando processos e a comunidade rural se reinventando para enfrentar desafios como clima, custos e mão de obra.

Em Jaguaré, onde a agricultura familiar é base da economia, esse modelo representa não apenas continuidade, mas evolução. É a prova de que a sucessão rural pode garantir mais do que a sobrevivência da pequena propriedade: pode garantir um campo sustentável, produtivo e inclusivo — onde memórias, tecnologias e novas profissões dividem o mesmo solo.

Julia Camim

Editora de Política

Atuou como repórter de política em jornais do Espírito Santo e fora do Estado. Jornalista pela Universidade Federal de Viçosa, é formada no 13º Curso de Jornalismo Econômico do Estadão em parceria com a Fundação Getúlio Vargas.

Atuou como repórter de política em jornais do Espírito Santo e fora do Estado. Jornalista pela Universidade Federal de Viçosa, é formada no 13º Curso de Jornalismo Econômico do Estadão em parceria com a Fundação Getúlio Vargas.