Da lama aos caranguejos, os recursos do manguezal do Espírito Santo são fonte de sustento para muitos capixabas. Em Cariacica, cerca de 50 famílias sobrevivem da extração e comercialização do sururu.
As marisqueiras – grupo formado em sua maioria por mulheres – que catam, limpam e vendem o marisco, utilizam técnicas ancestrais e se apoiam umas nas outras para gerar renda e garantir sua sobrevivência.
É o caso de Olívia Benedita, de 53 anos. Mineira, a marisqueira saiu de Mantena e chegou em solo capixaba sem muito conhecimento sobre pesca, mas não demorou muito para ela ser acolhida por outras mulheres e, no manguezal cariaciquense, descobrir uma fonte de sustento e alegria.
“Eu tenho o costume de falar que tive professoras aqui”, conta ela que, pela necessidade de contribuir com a renda da casa e sustentar, ao lado do marido, os dois filhos, se tornou, em 2011, oficialmente uma marisqueira. Hoje, ela se orgulha do trabalho:
Eu amo. Tenho orgulho de falar que eu sou marisqueira, que eu sou pescadora. Não importa: em todos os lugares que eu vou, se me perguntam qual é a minha profissão, eu falo que eu sou marisqueira.
Apesar do resultado econômico local da atividade, o custo ambiental da cultura do sururu é alto. O descarte irregular das “cascas” do marisco gera poluição nas margens da Bacia Hidrográfica do Rio Santa Maria da Vitória que causa, além do mau cheiro, o aterramento do manguezal.
Casca de sururu e a sobrevivência do ecossistema
O problema que ameaça a sobrevivência do ecossistema, berço de muitas espécies animais e vegetais, chegou, em 2023, ao Instituto Goiamum – ONG ambientalista sediada no Balneário de Carapebus, na Serra. O objetivo da Prefeitura de Cariacica, naquele momento, era encontrar soluções para melhorar o processamento do sururu.
Chegando em Porto Novo, entretanto, o fundador da ONG, Iberê Sassi, entendeu que a questão a ser resolvida era outra.
“Quando cheguei aqui, eu vi um monte de casca invadindo e aterrando o mangue, outras jogadas em caixotes rodeadas de moscas. Então eu disse: ‘Olha, isso é muito mais premente de resolver do que a forma de extração’”.
Dessa emergência surgiu o Projeto Sururu, que está em fase de implementação e, ainda neste ano, deve mudar a realidade local.
A princípio, a proposta buscava apenas solucionar o problema ambiental constatado, mas acabou sendo ampliado e agora abrange diversos aspectos da atividade das marisqueiras.
“Começamos a ver o lado social, econômico, de relações com a comunidade, e a coisa evoluiu. Convocamos o Sebrae, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)… Todo mundo está se unindo”, afirma Iberê, que chama o processo de “economia azul”.
Corretivo agrícola que agrega valor
A partir da mobilização, o projeto que se concretizou não só retira o “lixo” do local, mas agrega valor ao subproduto a partir da transformação das cascas em um corretivo agrícola. Agregando valor, as marisqueiras incrementam a renda e o empreendedorismo local e feminino ganha força.
Na prática, as cascas antes descartadas de maneira inadequada serão compradas e coletadas para serem transportadas para a sede do Instituto. Lá, elas serão secas e moídas para virar pó.
Em seguida, o produto que oferece diversos benefícios – “é basicamente carbonato de cálcio”, justifica Iberê – será vendido para o setor agrícola.
Ele tem uma propriedade superinteressante porque ele é de lenta absorção. Então, quando usado na agricultura, o efeito dele é muito mais a longo prazo do que o calcário químico ou calcário dolomítico, que são muitas vezes, inclusive, extraídos de lugares ilegais no Brasil.
Os benefícios atingem, por exemplo, os pequenos produtores orgânicos e cafeicultores, que poderão agregar valor ao seu produto por meio do uso de um calcário natural que enriquece a terra e, consequentemente, o que é cultivado.
Pelo potencial do Projeto Sururu, em junho de 2024 ele foi selecionado pelo Fundo Estadual de Meio Ambiente do Espírito Santo (Fundema) para receber um investimento de R$ 950 mil. Parte do valor foi utilizado para adquirir o maquinário necessário para o beneficiamento das cascas do sururu, que já estão na sede do Goiamum.
Segundo Aline Garcia, secretária executiva do Fundema, o projeto está “totalmente alinhado aos objetivos do Fundema, que é um fundo destinado para o apoio aos projetos relacionados às políticas de meio ambiente”.
Os recursos do Fundema são estaduais, provenientes, principalmente, de multas aplicadas por infrações às normas que decorrem das políticas de meio ambiente.
A iniciativa regional é, para Aline, uma oportunidade de testar e, em breve, expandir a solução para outros lugares do Estado que enfrentam as mesmas dificuldades: “Hoje, o projeto é voltado para uma região específica, mas tem um potencial enorme de abranger outros municípios”.
Um dos aspectos relevantes considerados pelo Fundema para a seleção é o fato de que as cascas serão compradas apenas das mulheres. Para a secretária executiva, a escolha é uma maneira de valorizar o trabalho delas, “que têm um papel fundamental em todo o processo”.
A gestora do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) DELAS, Suzana Sanches, explica que incluir as marisqueiras em mais um setor econômico contribui não só para o empoderamento feminino, mas também para o desenvolvimento do território.
Quando essas mulheres passam a fazer parte de uma nova cadeia produtiva, que vai além da pesca e da mariscagem, elas movimentam a economia local de um jeito mais diverso e sustentável. Isso ajuda o território a se desenvolver de forma mais equilibrada, gera novas oportunidades e valoriza saberes que vêm de muito tempo.
Olhar atento para comunidades costeiras
Para ela, a iniciativa revela um “olhar mais atento para o potencial das nossas águas e comunidades costeiras”.
Este olhar atento também é percebido a partir da atuação das pesquisadoras da Ufes envolvidas no projeto. A professora do Departamento de Oceanografia, Natalia Bezerra, conta que o grupo busca, por meio de visitas às marisqueiras, compreender a realidade da comunidade para produzir conhecimento científico sobre ela.
O objetivo é acompanhar e avaliar as condições de trabalho das mulheres, identificando o perfil delas e a ancestralidade relacionada à cultura do sururu, além de investigar “qual a percepção que elas mesmas têm do ambiente”.
Os dados adquiridos sobre o grupo poderão ser utilizados, no futuro, para realizar comparações e identificar mudanças sociais, econômicas e até culturais na região.
O mapeamento da realidade também vai permitir que as mulheres recebam os treinamentos e qualificações necessárias. Por meio do Sebrae, espera-se que elas possam melhorar questões de higiene e de valorização do produto final, por exemplo.
Mas para que a situação como um todo melhore, é necessário atender a outras demandas, mais antigas ainda, das marisqueiras.
Preocupação com o esgoto não tratado
Rosineia Pereira Vieira, conhecida como Néia, 51, é marisqueira e presidente da Associação de Pescadores, e explica que, há anos, elas pedem o tratamento do esgoto no local. Atualmente, o esgoto não é tratado e vai direto para a bacia.
“Precisamos começar pela rede de esgoto para termos uma vida digna”, afirma Néia, que também pontua a necessidade de um píer e de uma Unidade de Beneficiamento de Pescado (UBP) para que as mulheres possam trabalhar com mais segurança e preservando a saúde.
O píer, explica a presidente da associação, facilitaria o deslocamento das marisqueiras mesmo em períodos de maré baixa, quando a lama “segura” as embarcações longe da margem.
Já a UBP é uma instalação que, além de preservar os mariscos de forma mais higiênica, também possibilita o uso de equipamentos ergonômicos, que contribuem para o bem-estar das mulheres.
Como conta Néia, e reforça Olívia Benedita, as condições que elas têm hoje ainda causam muitas doenças relacionadas aos movimentos repetitivos, às posturas incorretas, à necessidade de força braçal, à exposição ao sol, à lama e ao calor do cozimento.
Envolvida com a comunidade e o projeto, a secretária das Mulheres e Direitos Humanos (Semdh) de Cariacica, Lorena Nascimento, disse que a prefeitura já iniciou as articulações necessárias “para viabilizar o início do tratamento de esgoto na região e a instalação do píer”.
Ela reforça que atender às necessidades locais é importante para valorizar o trabalho das marisqueiras que, “com muita dedicação, sustentam suas famílias e preservam uma tradição essencial para a nossa cultura e economia local”.
Enquanto isso, as marisqueiras aguardam animadas e ansiosas pelas melhorias e acreditam nas mudanças que o projeto e as instalações podem proporcionar, não só para elas, mas para o mangue, tão valioso para cada uma.
Aqui, a gente tem uma ilha dentro do quintal. A gente pega o barquinho e vai, você vê muitos lugares lindos, tem um deslumbre mesmo. É um lugar muito bonito. Lugar que se todo mundo continuar conservando, vai ficar para nossas gerações futuras.
Olívia Benedita.