
O governo federal identificou “abusos” nas taxas de juros oferecidas por algumas instituições no novo crédito consignado privado e avalia estabelecer um teto para a cobrança. Quem admite é o secretário de Reformas Microeconômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Barbosa Pinto.
Nesse sentido, na última semana, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, colocou em pauta um possível limite para os juros cobrados no novo programa de empréstimo com desconto direto em folha.
“Essa é uma discussão que existe desde o início do programa, se deveria ou não haver teto. E essa discussão continua”, afirmou Pinto. “A lei diz desde o início que poderia haver um teto. Agora, é preciso avaliar e é muito importante. A depender do teto que fixar, vai deixar gente de fora do programa”.
Em entrevista exclusiva ao Estadão/Broadcast, o secretário afirma que há uma migração, pelo consumidor, de linhas de crédito mais caras para o consignado privado. Ele afirma ainda que fixar um teto pode colocar em risco essa migração.
Medidas para reduzir juros
Por isso, Pinto diz apostar em duas medidas anteriores para diminuir os juros. O início da portabilidade no consignado privado e a criação de uma espécie de “alerta” aos tomadores do crédito quando as taxas cobradas estiverem muito altas. Porém, as iniciativas dependem de aprimoramentos em tecnologia da informação, pela Dataprev, e devem ser concluídos até o fim do ano.
O secretário defende ainda o aumento da tributação sobre as bets, tema que consta de medida provisória (MP) enviada pelo governo ao Congresso, como forma de diminuir o jogo. E argumenta que a isenção de Imposto de Renda nas Letras de Crédito Imobiliário e do Agronegócio (as LCIs e LCAs) está provocando uma distorção no mercado. Ou seja, produz, como efeito adverso, o aumento dos juros de toda a economia de forma estrutural.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, disse que poderia haver um teto nos juros cobrados no crédito consignado privado. Essa ideia está em estudo no Ministério da Fazenda?
É uma discussão que existe desde o início do programa, se deveria ou não haver teto. E essa discussão continua. Por um lado, o programa está no começo; a própria Dataprev está adaptando sistemas, a portabilidade ainda não está implementada. A ideia é continuar avaliando as taxas de juros cobradas para ver se há necessidade ou não de um teto. Isso está em discussão.
Então, pode ter teto?
Pode, a lei diz desde o início que poderia ser fixado um teto. Agora, o que tem de ser avaliado, e é muito importante, é que, dependendo do teto que fixar, vai deixar gente de fora do programa.
Como assim?
O que está acontecendo hoje no consignado privado, e os números do Banco Central mostram isso de maneira clara, é que o crédito sem garantia está reduzindo e o crédito com garantia está aumentando por causa do consignado.
Está havendo uma migração?
A taxa de juros média no crédito sem garantia é de 12% (ao mês). A taxa média no novo consignado é de 3,6% (ao mês). Então, está havendo um movimento de troca de dívida. Se colocar um teto, pode travar esse movimento ou restringir para algumas pessoas. Então, isso tem de ser muito bem pensado para que não acabe prejudicando a própria população. E quem paga o juro mais alto, em geral, é o trabalhador com vínculo de curto prazo, que ganha até dois salários mínimos e tem poucas opções de crédito acessíveis. Então, temos de tomar muito cuidado. Mas a gente tem verificado abusos, tem havido abusos.
Que tipo de abusos?
Taxas muito altas que não se justificam em nenhum momento, tentando explorar a vulnerabilidade e a pressa do consumidor. Então, coloca uma proposta rápida, o consumidor olha aquela proposta, foi a primeira que chegou, fecha a operação.
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E como não tem portabilidade, ele fica amarrado nela…
Exatamente, esse é um problema. Outra medida intermediária é um regime de contratação diferida, que diz o seguinte: toda vez que a taxa de juros sair de determinados parâmetros, se ela for muito mais alta, o sistema avisa “você está contratando uma taxa muito alta; segura essa operação, vamos refazê-la em dois dias”. Para que o consumidor tenha outras opções de crédito, pense naquilo. A gente acha que essa é uma alternativa melhor ou que pode ser combinada com um teto (na taxa de juros).
Mas por que a portabilidade não saiu?
É um problema de tecnologia da informação. A Dataprev está trabalhando bastante, é um programa grande e deve ficar pronto neste ano.
Mas o Ministério da Fazenda é contra o teto?
Nosso papel nessa discussão é explicitar o que se ganha e o que se perde com cada situação. Tem abusos gravíssimos, eles precisam ser corrigidos. Tem coisas que não se justificam em nenhum lugar.
Um aumento expressivo de juros? De quanto?
Prefiro não definir, mas tem juros sendo cobrados completamente fora do padrão, e isso precisa ser coibido. Além disso, a gente precisa ter um sistema que alerte dos juros altos para que as pessoas tenham tempo de refletir, comparar e para que a concorrência funcione. Terceiro: a gente precisa aprimorar o sistema para oferecer todos os benefícios que esse sistema pode dar.
O que falta para concluir?
O sistema de execução da escrituração do crédito consignado ainda está sendo aprimorado. Ele foi testado agora, e isso vai reduzir o risco de inadimplência e levar a taxas de juros menores. A portabilidade também. A gente precisa completar essas outras etapas. Até o final do ano, tudo isso vai estar pronto. E outra coisa importante: as garantias do FGTS. A lei diz que pode usar o FGTS como garantia, mas isso também não está implementado, pendente de tecnologia da informação e de uma decisão do Conselho Curador do FGTS.
O sr. avalia que houve um erro de tom no anúncio, quando se criou uma expectativa grande de que os juros oferecidos no consignado privado seriam mais baixos ou equivalentes aos do consignado do setor público?
Ao contrário: o sucesso do programa foi muito maior do que se esperava. O programa está girando com uma concessão de R$ 300 milhões de crédito por dia. Se olhar o mesmo público que tinha acesso ao consignado privado antes, a taxa é bem mais baixa: 20% a 30% mais baixa.
O programa está gerando crédito para pessoas na faixa de um salário mínimo, dois salários mínimos, que trabalham como pessoas físicas, como patrões ou como micro e pequenas empresas. É uma grande expansão do programa.
Os grandes bancos privados aderiram ao consignado?
Estão entrando, mas eles estão focados em defender a própria carteira, do cliente deles que poderia buscar empréstimo em outro lugar. O que está acontecendo é uma disputa muito maior do que só o consignado; é uma disputa por um novo modelo de financiamento do crédito ao consumidor.
Porque, ao entrar na plataforma, o cliente está abrindo os seus dados para outros bancos. E o banco que está na plataforma não está interessado só naquele empréstimo, mas no cliente – que pode ser um potencial tomador de crédito imobiliário, por exemplo.
Os grandes bancos, por terem um relacionamento estabelecido com os clientes, sobretudo os de mais alta renda, que têm estabilidade no emprego, acabam tendo vantagem competitiva para oferecer produtos para esses clientes. E eles nem sempre oferecem o menor preço. Outro banco poderia oferecer esse produto a melhor preço se tivesse acesso a essa mesma informação.
Frustrou a taxa do consignado privado não ter ficado mais baixa — a média é de 3,6% ao mês —, superior à do consignado do servidor público?
Mas o juro para essas pessoas caiu de 12% ao mês (taxa média do crédito livre ao consumidor) para 3,6% ao mês (do consignado). Não existe queda maior. E, se pegar o cliente que estava no consignado privado anterior, ele vai estar (com uma taxa) exatamente entre o consignado público e o consignado privado, para o mesmo risco.
Antes, havia um perfil de risco dos tomadores melhor. Agora, você massificou o produto. E, massificando, você está trazendo empresas com maior risco, estruturação precária, gente que tem menos estabilidade no emprego, menos tempo de vínculo, isso tudo encarece (a taxa de juros fica mais alta), né? Mas, nas novas concessões, a taxa de juros continua caindo desde o início do programa.
Quando você pega crédito pessoal sem garantia, como cartão de crédito, cheque especial, CDC (Crédito Direto ao Consumidor), o volume dessas linhas está caindo e o que está aumentando é o consignado.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, manifestou insatisfação com o spread bancário não só nessa linha, mas em outras também. Há iniciativa em curso nesse sentido?
É verdade. Tem várias iniciativas e, há muito tempo, questões em que estamos trabalhando desde o início do governo, como a reforma da lei de falências, o projeto de desjudicialização da cobrança de dívidas, as novas regras para mercado de capitais, que permitem uma concorrência com sistema bancário. É um processo longo, é uma luta difícil, mas a gente vê um grande espaço.
Havia expectativa de o governo lançar a linha de crédito para empreendedores usando como garantia os recebimentos de Pix. Qual a perspectiva?
Está na agenda regulatória do Banco Central para o ano que vem. Tem uma agenda de tecnologia pesada. Eu acredito que o principal projeto que o BC esteja tocando neste momento seja o Pix parcelado; mas, na sequência, segundo a agenda do BC, é o Pix garantia.
O sr. acredita que o Pix parcelado pode ser um concorrente dos cartões de crédito de forma estrutural, como alega o governo Donald Trump?
É mais um produto à disposição do consumidor. Eu acho que quem vai vencer essa batalha é menos importante; o importante é que tenha competição. Isso é o que vai beneficiar o consumidor. (Não é só custo;) Tem também a comodidade no uso do cartão de crédito.
É um pouco mais demorado você fazer a mesma operação com Pix numa loja e essa comodidade é relevante para as pessoas. Mas isso tende a mudar. Eu acho importante que a gente tenha um produto como o Pix, use todas as funcionalidades, porque o resultado disso é competição e benefício para o consumidor.
O Ministério da Fazenda está negociando com a bancada ruralista a permissão para taxar as Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs)?
Tem uma discussão com a FPA (Frente Parlamentar do Agronegócio), que diz que “parte do crédito que era destinado ao setor está vazando (indo para outros setores), a gente quer aumentar o direcionamento”. E eles trouxeram uma proposta para a gente. A questão aqui é calibrar o direcionamento ideal.
Porque, a partir de um certo momento, se o direcionamento (o quanto o banco é obrigado a direcionar ao agronegócio do valor de cada LCA vendida) é muito grande, você acaba cortando crédito, porque o benefício de emitir a LCA para o banco cai muito. Então, isso aqui tem de ser bem calibrado, e é essa a discussão que a gente está tendo.
Qual é o porcentual que o sr. considera ajustado?
A gente ainda tem que discutir, mas isso precisa também ser testado na prática. Você pode subir gradativamente (o porcentual de direcionamento), isso pode ser um caminho.
A contrapartida será tributar as LCAs em 5%?
A gente está em conversa tanto com o setor imobiliário quanto com o setor agrícola para que seja mantida a tributação prevista na medida provisória sobre os títulos isentos (como LCAs, letras de crédito imobiliárias e certificados de crédito agrícola e imobiliário). Essa negociação não está concluída.
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Há a possibilidade de o governo aceitar poupar os CRIs e CRAs para tributar apenas as LCIs e LCAs?
É uma das possibilidades que estão na mesa. Praticamente metade dos títulos emitidos é de títulos bancários, são as LCAs, LCIs e LIGs. A outra metade é de títulos não bancários. Uma das possibilidades é aplicar a tributação apenas sobre os títulos bancários.
Qual a perda de arrecadação?
Esse é um ponto importante. Estamos tratando muito menos de arrecadação e muito mais de distorção no funcionamento do mercado. Como a gente está preservando (da tributação) todo o estoque já emitido, o impacto (na arrecadação) para 2026 é muito pequeno.
Mas o mercado está sendo muito distorcido por esses títulos. A gente está falando de um mercado hoje de R$ 2 trilhões, que gera uma renúncia de R$ 40 bilhões por ano e que está comprometendo o financiamento da dívida pública e encarecendo o custo de crédito de todo o resto da economia.
Se uns estão pagando juros menores, outros vão pagar juros maiores. A gente tem uma renúncia (de arrecadação) imensa, que faz com que a gente tenha um fiscal mais fraco. Isso impacta a taxa de juros no longo prazo, retira a demanda pelos títulos do Tesouro e acaba voltando como custo para o setor.
Analistas preveem uma antecipação maciça no lançamento desses papéis antes da vigência do IR…
Sim, antecipação a gente imagina que vá acontecer, mas a gente acha que esse é um bom preço para se pagar por segurança jurídica. A gente não quis afetar o estoque, não quis prejudicar o investidor que comprou o título prevendo esse ganho de isenção.
Mas isso não afeta a arrecadação prevista com a medida, necessária para fechar as contas do governo em 2026?
A gente está pensando mais no longo prazo. Isso está se tornando um problema de gestão, quase um problema macroeconômico. A dívida pública hoje é de R$ 8 trilhões, e a gente está com R$ 2 trilhões de títulos (privados) isentos emitidos.
Grandes companhias que antes só captavam no mercado de capitais ou no mercado externo estão captando com custo abaixo do custo do Tesouro, em emissões que chegam a R$ 3 bilhões. No longo prazo, esse sistema não vai funcionar. É uma distorção enorme que a gente precisa coibir.
E por que isso é um problema?
Primeiro, só as empresas que têm o benefício (de poder lançar títulos isentos de IR) estão captando mais barato. O que está acontecendo? Como a demanda pelos títulos do Tesouro cai, a taxa de juros de longo prazo do Tesouro aumenta.
Qual a referência para todo o resto da economia? A taxa do Tesouro. Então, um capta mais barato, enquanto as outras empresas captam mais caro do que o Tesouro. E ainda está subindo o custo do Tesouro.
Na mesma medida provisória, o governo propõe aumentar a tributação sobre as fintechs. Isso não pode aumentar a concentração de mercado dos grandes bancos?
Primeiro, boa parte das fintechs hoje já tem o mesmo tamanho ou são maiores do que bancos. As instituições de pagamento, muitas vezes, são utilizadas meramente como um mecanismo de tributação mais barata.
Então, a fase em que a gente precisava ter tributação mais baixa para as fintechs, para que elas pudessem competir com os bancos, já passou. O que a gente está fazendo é simplesmente igualar o jogo para a competição. Não deixar que algumas empresas tenham um tratamento tributário melhor que as outras, porque isso atrapalha a competição.
Na semana passada, a Polícia Federal desbaratou um esquema de lavagem de dinheiro do PCC por meio de fintechs. A tributação coíbe esse tipo de conduta?
A questão da tributação é independente. Eu acho que seria um exagero dizer que a tributação vai melhorar o combate ao crime organizado. São problemas distintos. Eu acho que esse é um problema de monitoramento, de a gente entender o que está acontecendo, regular, exigir as autorizações corretas. Esse é o caminho para combater isso.
O sr. não vê resistência no Congresso em ampliar a tributação de bets?
Há resistência, mas eu acredito que a sociedade brasileira não vai ser conivente com esse tipo de coisa. Existe uma grande preocupação com o efeito que as bets estão tendo sobre a população, e acho que a população, a opinião pública, precisa nos ajudar a atacar esse problema.
A melhor forma de inibir o consumo é tributar. Mais do que proibir, tributar. Pelo preço, a gente consegue inibir o consumo.
Há uma discussão no Congresso de levar a tributação das bets para o projeto de isenção do IR para quem ganha até R$ 5 mil para reduzir a taxação sobre a alta renda e sobre o investidor estrangeiro. Como avalia a iniciativa?
Isso não faz sentido técnico.
Vocês discordam da avaliação de que a tributação de dividendos de estrangeiros vai afetar o investimento?
Não vai afetar o investimento. A maior prova disso é que não houve reação nenhuma na Bolsa à nossa proposta. A preocupação a esse respeito é indevida. Agora, vamos falar: dado esse fato, a gente tem um imposto que vai aumentar a tributação de gente mais rica, para compensar uma tributação das pessoas mais pobres.
A gente está contente com o relatório do deputado Arthur Lira (PP-AL), que foi aprovado por unanimidade na Comissão Especial. A gente não vê razão para mudar. E, além disso, tem uma dificuldade técnica. Se você for trazer a receita de bets ou a receita da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) dos bancos, que foi outra possibilidade aventada, elas são receitas da União exclusivamente.
E o projeto visa a compensar perdas de União, Estados e municípios, porque metade da receita do Imposto de Renda vai para os entes. Não há como você fazer uma contribuição e destinar recursos para os Estados e municípios. Então, tecnicamente, não é possível.