
*Artigo escrito por Ana Andrade, graduanda em jornalismo pela Ufes, redatora do Laboratório de Estudos do Oriente Médio (LEOM), especialista na área pela StandWithUs Brasil e membro do Ibef Academy.
Nos últimos meses, o cerco se fechou em torno das casas de apostas esportivas, as chamadas “bets”, com investigações conduzidas pelo poder público sob o argumento de que essas plataformas “enriquecem um pequeno grupo de empresários à custa da desgraça de milhões de brasileiros”.
Um discurso inflamado, revestido de preocupação social, mas que escancara uma contradição institucional: o próprio Estado brasileiro lucra há décadas com jogos de azar (e o faz sem qualquer pudor).
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É importante ressaltar que a temática não é defender as “bets”. Há problemas reais a serem debatidos e que devem ser analisados com seriedade. Mas o que está em jogo vai além da crítica às apostas esportivas: se trata da coerência do Estado brasileiro, que ataca com veemência o que ainda não regulamentou, enquanto fatura bilhões com práticas semelhantes sob o rótulo de “oficial”.
“Bets”
Segundo uma pesquisa do Instituto Locomotiva (2024), 72% das pessoas endividadas que apostam disseram preferir a loteria federal como forma de tentar mudar sua condição. Em terceiro lugar, vêm justamente as “bets”.
Isso revela algo essencial: a aposta não é um vício moderno. Ela é uma válvula de escape antiga, usada por milhões como forma de esperança, ilusão ou desespero. O Estado sabe disso (e sempre soube).
A diferença? Quando é ele quem vende o bilhete, tudo vira “incentivo aos sonhos”. Quando são plataformas privadas, passa a ser “exploração da miséria”. Onde está a coerência?
Manipulação das plataformas
Há outro ponto fundamental nesse debate: o discurso do vitimismo social absoluto. Atribui-se todo o peso do endividamento causado pelas apostas à manipulação das plataformas, esquecendo que a liberdade individual implica responsabilidade pelos próprios atos.
Jogar, apostar, arriscar, são decisões individuais. E, como toda escolha, têm consequências.
O livro “Psicologia Financeira” é ideal para elucidar a questão. Em todo o texto, o autor aborda situações de sucesso e fracasso em diferentes épocas, não atribuindo o peso dos resultados aos contextos específicos.
Pelo contrário, a todo tempo aponta comportamentos intergeracionais que respondem por esses produtos, como instinto de sobrevivência, frugalidade, deixar o ego de lado, definir objetivos pessoais, aprender constância e domar a paciência.
O Estado pode agir para coibir abusos e proteger grupos vulneráveis, mas isso é diferente de querer infantilizar a sociedade, tratando cada apostador como uma vítima irracional e cada empresário como um vilão predador.
Se formos por esse caminho, teremos que questionar também o crédito consignado, os empréstimos com juros abusivos, os carnês de loja, o “compre agora e pague depois”. Esses mecanismos endividam, e, muitas vezes, muito mais do que uma aposta de R$ 10 num jogo do Brasileirão.
Regulamentação do Estado
O que o Estado quer de fato: regular o mercado ou reassumir o monopólio do jogo? O modelo atual é ambíguo, permite as apostas, mas só se forem “oficiais”. Ataca plataformas privadas, mas protege os próprios canais de arrecadação.
É legítimo discutir regras, licenciamento e limites para publicidade, mas é desonesto fingir que o problema está apenas no setor privado, quando o Estado oferece à população a “Mega da Virada” como esperança de uma vida melhor.
Nessa modalidade de jogo, o valor total do prêmio é composto, em maior parte, pela arrecadação com as vendas do próprio sorteio. Já o restante é formado pelos valores acumulados em outros concursos da Caixa.
Conforme o Relatório Integrado de 2021, disponibilizado pela própria organização, as loterias federais bateram todos os recordes naquele ano. O volume de venda de jogos foi o maior da história. A arrecadação chegou a R$ 18,5 bilhões em todas as modalidades, 8,1% superior ao recorde anterior de R$ 17,1 bilhões, em 2020.
Formação de cidadãos
O Brasil precisa discutir apostas com seriedade, sem moralismo seletivo. O vício em jogo existe, como existe vício em consumo, em crédito, em likes, em redes sociais. A questão central é: vamos formar cidadãos responsáveis ou perpetuar uma sociedade de tutelados?
Mais do que criminalizar as “bets” ou santificar a loteria, precisamos assumir que o desenvolvimento econômico e social depende da maturidade institucional e da honestidade intelectual com que enfrentamos nossos próprios paradoxos.
O Estado não pode, ao mesmo tempo, se apresentar como protetor da população e seu maior tentador. Até lá, continuaremos todos jogando o velho jogo da hipocrisia.
Este texto expressa a opinião do autor e não traduz, necessariamente, a opinião do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Espírito Santo.