*Artigo escrito por Brunela Chiabai do Nascimento, advogada tributarista com formação pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e membro do Ibef Academy
O Brasil aprendeu a se manifestar nas ruas antes mesmo de aprender a votar com liberdade. Em tempos de ditadura, qualquer reunião pública era subversiva por definição, e a repressão tratava de deixar claro que as avenidas pertenciam ao poder, não ao povo.
Veja também: Setor público e sustentabilidade energética
Com a Constituição de 1988, o direito de reunião ganhou contornos de cláusula pétrea. Desde então, erguer cartazes e ocupar espaços tornou-se um dos mais potentes instrumentos democráticos.
Mas, como toda liberdade, essa também exige limites. E o que parece simples em teoria revela-se espinhoso na prática. O direito à manifestação encontra pela frente outro direito igualmente protegido pela Constituição: o de ir e vir.
A seletividade da indignação
A colisão entre ambos não é hipotética, é cotidiana. Em especial quando a Terceira Ponte, artéria que liga Vitória a Vila Velha, se transforma em palanque. As motivações variam. São políticas, sociais, econômicas, religiosas, cívicas, patrióticas e, em certos dias, apenas performáticas.
Curiosamente, a tolerância da sociedade com bloqueios varia de acordo com a pauta. Quando a causa agrada, a obstrução vira resistência legítima. Quando não, é baderna, crime ou desrespeito à ordem.
A liberdade do outro sempre parece um pouco excessiva, especialmente quando atravessa o próprio trajeto para o trabalho, a escola ou o show já pago. A indignação se mede pela afinidade ideológica com o congestionamento.
Esse dilema foi escancarado quando o Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu sobre um caso envolvendo a obstrução dos acessos ao Mineirão. Manifestantes impediram o ingresso de torcedores que haviam adquirido entradas para o jogo.
O Judiciário concluiu que, naquele contexto, a liberdade de reunião cedeu lugar à liberdade de circulação. Ninguém negou a legitimidade do protesto, mas tampouco se ignorou que os direitos não valem mais por serem exercidos com maior volume.
Manifestação ou exercício de poder?
A Constituição impõe ao Estado o dever de manter a ordem pública. A Lei de Greve impõe limites quando há impacto em serviços essenciais. A política urbana também estabelece balizas para o uso dos espaços comuns.
Quando duas liberdades se chocam, o Estado precisa arbitrar. É nesse momento que a retórica da liberdade se transforma em logística urbana.
Há dois cenários distintos. Quando a manifestação bloqueia totalmente uma via essencial, sem rotas alternativas, a liberdade de reunião deixa de ser exercício de cidadania e passa a ser exercício de poder sobre os outros.
Nesses casos, não se trata de convivência entre liberdades, mas de supremacia de uma sobre a outra. Já quando há alternativas viáveis de deslocamento e a manifestação é pacífica, não apenas é possível como é desejável que o Estado a proteja.
Caminhar, afinal, deve continuar sendo uma escolha, não um prêmio de quem acordou mais cedo.
Liberdade para todos
O Brasil precisa entender que liberdade não é um bilhete dourado para interditar avenidas sempre que a paixão política esquentar. Tampouco é um escudo moral para transformar vias públicas em arenas privadas de opinião.
O verdadeiro teste democrático não é suportar o protesto que emociona, mas aquele que atrasa. E quando todos os caminhos estão fechados, não há mais pluralidade, só ruído.
No fim, a liberdade que vale é aquela que permite que cada um chegue ao seu destino, mesmo que o objetivo seja tão singelo quanto voltar para casa ou, quem sabe, tão épico quanto levar um anel até Mordor.
Só não vale impedir o outro de atravessar a ponte porque se está convicto de que a causa é mais importante do que o caminho. Afinal, se todo mundo decidir parar o país para salvar o mundo, talvez ninguém chegue nem até a padaria.
Este texto expressa a opinião do autor e não traduz, necessariamente, a opinião do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Espírito Santo.