Ser mulher no mundo corporativo gera satisfação e amplas responsabilidades, até mesmo em pleno século XXI. Mas, para Marias, Anas e Luizas atingirem postos de comando, pioneiras enfrentaram estereótipos, romperam barreiras, desafiaram atos de machismo e patriarcalismo no Espírito Santo e em todo o Brasil.
Entre os principais desafios enfrentados ao longo das últimas décadas, segundo dados divulgados pela Agência Sebrae, estão a falta de representatividade e a jornada dupla feita a partir da conciliação da carreira com responsabilidades domésticas.
Pouco a pouco, sobretudo no último século, elas passaram a conquistar seus direitos. A igualdade de oportunidades que hoje permeia a sociedade só foi possível porque, nas décadas de 1960 e 1970, muitas abriram caminhos que raramente são mencionados nos livros de história.
“(Minha mãe) nunca se imaginou trabalhando com feiras e eventos”
A empresária natural de Colatina, Cecília Milanez Milaneze, de 75 anos, é o rosto por trás da Milanez & Milaneze S/A, fundada em 1989, uma das principais e pioneiras empresas de organização de feiras do Brasil, entre elas a Cachoeiro Stone Fair e Marmomac Brasil.
Em coma desde o dia 31 de agosto de 2024, passou a força, a responsabilidade e o legado dos negócios para a filha, Flávia Milanez Milaneze.
Com muita disposição e alegria, Flávia recebeu a reportagem do Folha Vitória para uma conversa no escritório da empresa e já começou a história narrando que “a mãe nunca se imaginou trabalhando com feiras e eventos”.
Tudo começou quando ela passou em um concurso para trabalhar em uma prefeitura, mas queria uma coisa mais dinâmica. Chegou a abrir uma loja de roupas e foi trabalhando até buscar o que realmente gostava nos negócios.
Entretanto, mal poderia imaginar que, por uma dessas coincidências da vida, a ideia de começar uma feira de negócios surgiria com um tapete vermelho, ao ser convidada a ajudar a organizar um evento na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Ela foi visitar uma feira, andou naquele tapete vermelho e pensou: ‘Poxa, é isso que eu quero fazer para a minha vida! ‘. Viu, então, a oportunidade de criar uma feira para o setor de mármore e granito, surgindo, em 1989, a primeira edição do evento em Cachoeiro de Itapemirim.
Desafios, obstáculos, adversidades e até mesmo o considerado “amadorismo” sempre são presentes no início dos negócios e isso não foi diferente para os Milanezes.
“A primeira feira nasceu com um planejamento de apenas dois meses. Ela conta que não sabia muito bem o que fazer. Quando chegou o primeiro visitante e perguntou onde era o banheiro, ela percebeu que nem isso havia sido previsto — era algo bastante amador. Mas enfrentou, sempre guiada pela vontade de fomentar negócios”, lembra Flávia.
Além de empreendedora, Cecília nunca deixou que os negócios abalassem a família, como uma grande mãe coruja, blindando os filhos das adversidades e desafios dos negócios.
Tenho certeza de que ela passou por muitos desafios, principalmente por ser mulher naquela época, no mercado de trabalho. Mas ela sempre nos blindou muito, tratou meus irmãos e a mim com igualdade, e isso nunca a impediu de trabalhar e abrir portas para outras mulheres.
Flávia também se orgulha em narrar sobre o como a mãe abriu portas, tanto para ela, quanto para outras mulheres dentro do setor. “É um ambiente muito masculino, onde na foto institucional tem cerca de 25 pessoas e você é a única mulher. Ainda temos barreiras a serem quebradas”, pontua.
“Tem que fazer com vontade de vencer”
Marcina Chiabay Loureiro esbanja classe no auge dos 97 anos com muita disposição que impressiona até os mais jovens. Visionária nos negócios na capital, Vitória, ela construiu uma trajetória da qual se orgulha com muita alegria e felicidade.
Nascida no município de Afonso Cláudio, na região Noroeste do Estado, ela faz parte de uma família na qual o comércio corre nas veias, tendo como base o pai, Raimundo Chiabay.
Ele me inspirou no comércio e inclusive foi ele quem colocou luz elétrica em Afonso Cláudio. As mercadorias chegavam em burros, trabalhávamos com tropas e vendíamos de tudo! Depois viemos para Vitória e eu era bem garota, com apenas 9 anos.
Em 1964, no momento em que muitas mulheres ainda não pensavam em empreender, ela abriu a primeira “butique de luxo” de Vitória, localizada no Parque Moscoso, no Centro da capital do Estado.
Sempre fui muito animada e gostava do movimento do comércio. Vendia de tudo, ‘de A a Z’, desde chapéus a vestidos de festa, tecidos e sapatos. As mercadorias vinham direto do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Mas, infelizmente, por ser mulher durante a década de 60 no Brasil, nem tudo era apenas vestido de festa e flores. O medo da família com uma bela mulher de olhos azuis andando pelas ruas sozinha era presente. “Eu não andava sozinha, o marido não deixava”.
Com 97 anos, mãe de Suzane e Ricardo e avó de Vickie, Cindy, Ingrid, Marcina, Ricardo e Rebeca, ela continua indo à loja da filha Suzane White, onde encanta as clientes. “Tem que ter vontade de vencer e atender bem a todos!”, conta sorrindo.
“Fazer o que gosta”, diz Antonietta Cangini
Em uma cantina típica italiana no coração da Praia do Canto, a nonna Antonietta Cangini, de 92 anos, recebeu a reportagem preparando uma bela lasanha na cozinha do restaurante Cantina Fiorentina do Mário.
Natural da cidade de Florença, ou na língua-mãe, Firenze, na Itália, veio para o Espírito Santo com 24 anos junto com o marido Mário Cangini. O patriarca da família, que já havia viajado anteriormente ao Brasil para visitar uma irmã, se encantou pela terra e decidiu ficar.
Ele veio embora da Itália após a morte do pai. Depois de um ano fez uma procuração, nós casamos. Cheguei no ano de 1958, na época era uma longa viagem de navio porque ainda não tinha avião.
A história de Antonietta se funde com a construção de um dos primeiros restaurantes italianos de Vitória. Segundo a “nonna”, no início se sentiu uma “estrangeira” no país tropical, mas depois que “quebrou a bolha de timidez capixaba” foi bem acolhida por todos.
Em 1962, Mário assumiu a gerência de um restaurante na Praça Costa Pereira. A experiência reacendeu o gosto pelo trabalho e, algum tempo depois, nasceu a Cantina Florença, em um pequeno sobrado na Rua Duque de Caxias, com Antonietta sempre ao lado nos negócios.
No ano de 1966, após perceberem a necessidade de mais espaço diante do sucesso do restaurante, se mudaram e começaram a funcionar em uma sobreloja na Escadaria Maria Ortiz, no Centro de Vitória.
Mesmo com o sucesso, enfrentou anos desafiadores. Por quatro anos, manteve o restaurante funcionando sem nenhuma ajudante, além disso, também cuidava da filha pequena, Simonetta e lidava com a saudade da terra natal, a Itália.
Trabalhava muitas horas, dia e noite, na cozinha, com um fogão quatro bocas. O cardápio era enxuto, mas saboroso: lasanha com filé, frango com talharim, carne assada com massas variadas.
Mesmo com o cardápio simples, o negócio foi crescendo e se tornou um grande sucesso entre os fregueses, que se encantavam com os sabores e temperos. O casal se mudou para a Praia do Suá, onde abriu um novo restaurante, o Mario’s, em 1968.
Os anos foram passando e, em 1995, encerraram as atividades e se mudaram para a Cantina Fiorentina do Mário, na Praia do Canto, que existe há mais de três décadas.
Antonieta relembra a trajetória com orgulho e é um testemunho de resiliência e paixão, que ajudou a consolidar a presença da culinária italiana no Espírito Santo e a transformar o amor em um legado familiar.
Mulheres ainda enfrentam desafios na atualidade
Diante do notável número crescente de mulheres no papel principal nos negócios, sendo apenas possível diante da garra e luta das pioneiras, o empreendedorismo feminino vem mostrando força.
Segundo a gerente de Relacionamento Institucional do Sebrae/ES, Alline Zanoni, em 2024, as mulheres representaram 46,8% dos empreendedores iniciais no Brasil. Dessas, cerca de 73% são mães e 37% mães solo.
Mesmo assim, alguns desafios e dificuldades permanecem até os dias atuais, como, por exemplo, a desigualdade salarial com diferenças de renda, mesmo com maior escolaridade e falta de redes de apoio.
O caminho para contornar esses desafios surge diante da capacitação, fortalecimento e formação de redes de apoio, até mesmo com o apoio de outras mães empreendedoras.