
O Dia da Consciência Negra (20) é um convite à reflexão sobre a falta de oportunidades profissionais para brasileiros negros e também sobre as trajetórias de resistência que ajudam a transformar essa realidade. Uma dessas histórias é a de Marília Silva, economista-chefe da Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes) e gerente executiva do Observatório Findes.
No setor industrial capixaba, ela atua diretamente na produção de conhecimento e indicadores de uma das principais áreas da economia do Espírito Santo, em um cenário em que profissionais negros seguem sub-representados, com poucas oportunidades, principalmente em cargos de liderança. “A luta, infelizmente, ainda está longe de acabar”, afirma.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua mostram que, no terceiro trimestre de 2025, trabalhadores negros no Brasil receberam, em média, 41% menos que trabalhadores brancos. No Espírito Santo, a desigualdade permanece: a remuneração média da população negra foi 34% inferior à da população branca.
A economista-chefe da Findes acredita que a diversidade é um elemento essencial para ampliar a capacidade de inovação nas empresas e no setor industrial.
“Cada pessoa tem sua história, mas grupos sociais (como mulheres, pessoas negras, pessoas de distintas classes sociais, idades, orientação sexual etc.) costumam dividir vivências que moldam sua forma de perceber o mundo e solucionar problemas”, destaca.
Em entrevista ao Folha Vitória, Marília defende que a redução dessa desigualdade requer mais do que iniciativas isoladas no âmbito corporativo, com implementação de políticas públicas efetivas e criação de mecanismos estruturais que promovam equidade.

Entrevista com Marília Silva
No Dia da Consciência Negra, como avalia a presença e a representatividade de profissionais negros nos cargos de liderança da indústria capixaba?
A participação de profissionais negros em posições de liderança, tanto no mercado de trabalho brasileiro, como no capixaba, ainda permanece restrita.
Essa restrição reflete barreiras históricas e estruturais, mas também práticas institucionais e culturais que acabam dificultando a ascensão de trabalhadores negros a cargos estratégicos.
No caso da indústria capixaba, a diferença de representatividade nos cargos de liderança entre profissionais brancos e negros também é observada.
De acordo com os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), em 2023, 52% dos cargos de gerência e diretoria em empresas industriais do Estado eram ocupadas por pessoas brancas, enquanto aproximadamente 40% eram ocupadas por pessoas pretas e pardas, sendo a participação de pretos de 3%.
A critério de informação, segundo o Censo Demográfico de 2022 do IBGE, 61% da população do Espírito Santo é composta por pessoas pretas e pardas.
É preciso destacar que a redução dessa desigualdade requer mais do que iniciativas isoladas no âmbito corporativo, demandando, também, a implementação de políticas públicas efetivas e a criação de mecanismos estruturais que promovam equidade, reduzam barreiras históricas e ampliem o acesso de grupos racialmente sub-representados a oportunidades de liderança e cargos estratégicos.
Os dados do Observatório Findes mostram avanços ou estagnação na inclusão de pessoas negras no mercado industrial do ES? Que indicadores mais chamam sua atenção?
No cenário mais amplo, os dados da Pnad Contínua, do IBGE, mostram que, embora as taxas de desocupação venham apresentando queda expressiva ao longo dos últimos anos, a população negra permanece como maioria entre os desocupados no mercado de trabalho, por exemplo.
Nessa pesquisa, desocupados são pessoas com 14 anos ou mais que não têm trabalho, mas que estão disponíveis para trabalhar e que procuraram por trabalho de forma ativa nos últimos 30 dias.
Segundo os dados, pretos e pardos representem 61% da população capixaba em idade de trabalhar, mas eles correspondem a 76,6% das 54 mil pessoas desocupadas no terceiro trimestre de 2025 no Espírito Santo.
A taxa de desocupação também reflete essa desigualdade: enquanto brancos registram uma taxa de 1,7%, pardos chegam a 3,1% e pretos a 3,2%, mostrando que trabalhadores negros enfrentam maiores dificuldades de inserção e permanência no mercado de trabalho.
Em contrapartida, a população negra representava, em 2023, 62,3% dos trabalhadores com carteira assinada no Espírito Santo, segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério do Trabalho e Emprego, evidenciando sua forte presença no mercado de trabalho.
Esse padrão também se verifica no setor industrial capixaba. No mesmo ano, trabalhadores negros tinham participação de 68,5% na força de trabalho da indústria, especialmente na indústria extrativa e na construção.
Mas essa alta representatividade no mercado de trabalho como um todo, infelizmente, é acompanhada por estatísticas de salários menores e baixa participação em cargos de liderança.
De fato, os dados apontam avanços na inclusão de pessoas negras no mercado industrial do Espírito Santo, especialmente no crescimento absoluto de trabalhadores pretos e pardos.
No entanto, persistem desigualdades salariais, menor representatividade proporcional das pessoas pretas em cargos de liderança, o que sinaliza que o avanço é gradual, mas ainda pouco suficiente para caracterizar equidade plena.
A disparidade salarial e a sub-representação de pessoas pretas em cargos de liderança são os indicadores que mais chamam atenção.
O Observatório Findes identifica diferenças salariais significativas entre trabalhadores negros e não negros na indústria? O que explica esse cenário?
Em geral, há diferenças salariais expressivas entre trabalhadores negros e não negros no mercado de trabalho brasileiro.
Por exemplo, os dados recentes da Pnad Contínua indicam que, no terceiro trimestre de 2025, trabalhadores negros no Brasil receberam, em média, cerca de 41% menos que trabalhadores brancos em seus empregos principais, incluindo tanto vínculos formais quanto informais.
No Espírito Santo, o padrão segue a tendência nacional, com a remuneração média da população negra no trabalho principal sendo cerca de 34% inferior à da população branca, também considerando todos os tipos de ocupação.
Quando analisamos especificamente o mercado formal, com um recorte por atividades econômicas, observamos que as desigualdades salariais não apenas persistem, como em alguns setores se intensificam.
Esse cenário desigual entre trabalhadores negros e não negros é resultado da sobreposição de diversos fatores. As desigualdades de acesso à educação básica, qualificação profissional e ensino superior ainda dificultam o ingresso em empregos de melhor qualidade e limitam a progressão profissional.
Somam-se a isso a discriminação, os vieses no mercado de trabalho e a vulnerabilidade socioeconômica, que incide de forma desproporcional sobre a população negra, restringindo oportunidades e perpetuando desigualdades.
Esses fatores acabam se refletindo na composição ocupacional, com a maior presença de trabalhadores negros na informalidade.
No terceiro trimestre deste ano, 38,8% dos trabalhadores negros, ou seja, pretos e pardos ocupados no mercado de trabalho capixaba, estava na informalidade, segundo a Pnad Contínua.
Além disso, quando se observa todo o conjunto de trabalhadores inseridos na informalidade, 63% desse grupo é composto por pretos e pardos, evidenciando a maior vulnerabilidade dessa população nas formas menos protegidas de inserção laboral.

Quais são os principais desafios enfrentados por mulheres negras que buscam ascender profissionalmente em setores historicamente masculinos, como a indústria?
Essa é uma pergunta bastante complicada porque há uma interseccionalidade que deve ser considerada, que é o fato de se ser mulher e também de ser negra.
É comum pensar que neste caso seria como se somássemos as barreiras enfrentadas pelas mulheres àquelas enfrentadas pelas pessoas negras, mas não é assim, não é uma ciência exata.
Um exemplo é que enquanto mulheres brancas precisam enfrentar estigmas de fraqueza e fragilidade, tendo que se provarem constantemente fortes e resistentes, mulheres negras podem ter que lidar com estigmas opostos, como: força, resiliência e resistência.
Do ponto de vista do reconhecimento da intelectualidade, do conhecimento técnico das mulheres negras, o desafio é parecido, mas aqui a ciência parece se aproximar mais das exatas.
A dúvida sobre a capacidade intelectual e a performance laboral das mulheres (brancas ou não brancas) costuma ser uma constante no mundo do trabalho.
Quando somamos a isso a construção social que questiona a intelectualidade de pessoas negras, acabamos impondo às mulheres negras uma busca contínua, e muitas vezes excessiva, por excelência e alta performance.
O que, em tese, deveria impulsionar sua ascensão profissional, paradoxalmente, pode se transformar em obstáculo.
Na sua visão, como a diversidade racial pode contribuir para a inovação dentro das empresas e do setor industrial como um todo?
Dentro das empresas e do setor industrial como um todo, a diversidade é um elemento essencial para ampliar a capacidade de inovação.
Cada pessoa tem sua história, mas grupos sociais (como mulheres, pessoas negras, pessoas de distintas classes sociais, idades, orientação sexual etc.) costumam dividir vivências que moldam sua forma de perceber o mundo e solucionar problemas.
Portanto, ainda que a empresa tenha um ambiente propício a inovação, a ausência ou baixa diversidade de trajetórias e visões de mundo tende a restringi-la.
Como políticas internas de recrutamento e formação podem ajudar a transformar a realidade de sub-representação racial nas indústrias?
Na minha opinião, a palavra é intencionalidade. É preciso agir de forma intencional. Se o objetivo for aumentar o percentual de trabalhadores negros na empresa, muito provavelmente, será necessário abrir processos seletivos exclusivos para pessoas negras.
Se porventura não se encontrar uma pessoa negra que atenda a todos os requisitos da vaga, a empresa pode optar por desenvolver aquelas habilidades após a contratação.
A mesma lógica serve para cargos de liderança. Mas acredito que essa lógica sirva para todos os grupos sub-representados dentro de uma empresa. Não haverá resultado sem intencionalidade nas ações.
Como mulher negra no topo de uma área estratégica, sente que sua trajetória inspira mudanças estruturais? De que forma sua presença ajuda a abrir portas para outras mulheres negras na economia e na indústria?
Mudanças estruturais exigem tempo e ações coordenadas entre governo, setor privado e sociedade civil.
Os três precisam almejar e, cada um no seu papel, garantir o direito das pessoas negras não apenas à educação de qualidade, como também, a outras necessidades básicas como: saúde, moradia, segurança, saneamento, lazer, cultura etc.
Eu ocupar as cadeiras de economista-chefe na Findes e de gerente executiva do Observatório Findes contribui, do meu ponto de vista, na formação da autoestima de crianças e mulheres negras que passam a perceber que esses espaços também podem ser ocupados por pessoas semelhantes a elas.
Isso pode parecer pouca coisa, mas o fato de acreditar que aquele espaço é para você faz com que você busque trilhar o caminho até lá.
Há um outro efeito, não tão direto, mas que acredito ser igualmente importante, que é gerar nos pares, líderes, liderados e pessoas externas a experiência de trabalhar com uma mulher negra em uma função tipicamente ocupada por pessoas brancas.
Mais uma vez, pode parecer pouca coisa, mas essa convivência cotidiana vai ajudando a diluir os estereótipos que carregamos no nosso inconsciente.
Acredito que esses sejam os dois principais meios pelos quais minha presença pode ajudar a abrir portas para outras mulheres negras.
Em algum momento da sua carreira sentiu que precisou provar mais do que outros colegas para ser reconhecida? Como lidou com isso?
Infelizmente, sim! Lidei e lido com isso internamente, consigo perceber quando isso acontece, mas infelizmente não tenho muito o que fazer além de continuar me esforçando para entregar a maior excelência possível, por menor que seja o trabalho.
Talvez por isso, eu tenha um carinho muito grande por um verso do Fernando Pessoa que diz: “Põe quanto és no mínimo que fazes”. É como se eu ouvisse essa “ordem” o tempo todo. O que, idealmente, não deveria ser o parâmetro que orienta minhas ações.
Como já mencionei, essa busca constante por excelência nasce menos de uma escolha pessoal e mais de uma estrutura que nos exige provar o tempo todo.
Ainda assim, é difícil simplesmente desligar essa lógica quando ela já está tão incorporada na forma como aprendemos a existir no ambiente acadêmico e profissional.
O que gostaria que jovens meninas negras soubessem sobre ocupar espaços de poder e tomada de decisão?
Que eles e elas podem e devem buscar ocupar esses espaços. E que, assim como os que vieram antes de mim e tornaram esses espaços, hoje, mais confortáveis para que eu e outras mulheres (ou homens) negras pudéssemos ocupar, hoje, eu e tantos outros negros, estamos também nos esforçando para que os próximos que vierem encontrem lugares ainda mais confortáveis.
Lugares onde possam apenas ser quem são, nas suas individualidades, sem a necessidade de representar toda uma luta, todo um grupo.
Como a sua história pessoal dialoga com o trabalho que realiza hoje no Observatório Findes? Há um sentimento de missão ou propósito?
Acho que dialoga em várias frentes, mas talvez onde o meu sentimento de missão ou propósito mais se faça presente é no meu papel de liderança.
É ali que posso imprimir de alguma forma aquilo em que acredito: um ambiente que busca a diversidade, a inclusão e o desenvolvimento pessoal e profissional das pessoas que ali trabalham.
E eu uso o verbo “buscar” porque tenho consciência de que sendo eu uma mulher negra formada em um mundo com tantas questões relacionadas a gênero, cor, orientação sexual, capacitismo, etc., ainda tenho muito a aprender e me desenvolver, para que minhas ações como líder estejam cada vez mais alinhadas ao ambiente inclusivo e plural que acredito ser possível construir.
O que significa chegar ao Dia da Consciência Negra como uma das principais vozes da economia industrial no Espírito Santo?
Pessoalmente, significa que todo esforço que eu fiz, que meus pais fizeram, que os pais dos meus pais fizeram e assim por diante me trouxe o retorno de uma vida feliz, confortável e plena.
Do ponto de vista coletivo, gosto muito de saber que ajudo meninas e meninos negros a se verem representados nesses espaços estratégicos e, portanto, a entenderem que podem e devem almejar chegar aqui ou onde desejarem.
Mas também chego a este 20 de novembro ciente de que a luta, infelizmente, ainda está longe de acabar.
Embora estejamos hoje conversando sobre a dificuldade de mulheres negras, e homens também, ocuparem espaços estratégicos como o que eu ocupo, sabemos que, para a maior parte da população negra do país, os direitos básicos, como saúde, educação, segurança e lazer, ainda não estão garantidos.
E somente quando esses direitos deixarem de ser um ideal distante e se tornarem realidade, estaremos nos aproximando, enfim, de uma grande vitória coletiva, digna do real sentido do Dia da Consciência Negra.
Quais valores familiares ou experiências de infância mais contribuíram para a sua força, disciplina e visão de futuro?
Eu tive o grande privilégio de ter muitas oportunidades na vida. Venho de uma casa de muito amor, muito cuidado, onde o estudo sempre foi prioridade.
Além de estudar, tive a oportunidade de ser atleta, e tudo isso foi me moldando, permitindo que eu aprendesse desde cedo que o esforço e a disciplina realmente podem nos levar a lugares distantes e a grandes conquistas.
Mas o esforço, sozinho, não faz tudo: é preciso que ele venha acompanhado da oportunidade de se desenvolver, de poder se dedicar, de permitir que a disciplina diária faça o trabalho lento e seguro de nos levar a um lugar melhor, a uma vida alinhada àquilo que possa nos fazer realizadas.
Trago esse ponto sobre oportunidade porque tenho clareza de que o esforço é condição necessária para o crescimento e o desenvolvimento pessoal e profissional, mas a oportunidade precisa se fazer presente.
E é isso que, sinceramente, desejo a todas as pessoas, mas neste 20 de novembro, em especial, a todas as pessoas negras: que suas vidas sejam repletas de oportunidades.