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A cegueira legislativa: retrocesso, censura e apagamento da diversidade na educação capixaba

Pais agora podem vetar participação de alunos em atividades sobre gênero em escolas do Espírito Santo; leia análise sobre o tema

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atividades de gênero nas escolas
Foto: Canva

No dia 17 de julho de 2025, entrou em vigor, por deliberação da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales), a Lei nº 12.479, que “assegura aos pais e aos responsáveis o direito de vedar a participação de seus filhos ou dependentes em atividades pedagógicas de gênero realizadas em instituições de ensino públicas e privadas”. Tal legislação abrange todas as instituições escolares e de ensino superior, em suas distintas etapas e modalidades, no território capixaba.

O artigo 2º da referida norma define atividades pedagógicas de gênero como aquelas que tratam de identidade de gênero, orientação sexual, diversidade sexual, igualdade de gênero e “outros assuntos similares” — uma formulação amplamente genérica e imprecisa, capaz de abarcar desde a leitura de personagens literários até discussões sobre direitos humanos.

Tal abrangência não apenas compromete os avanços nos estudos sobre gênero e sexualidade, como também enfraquece as ações de combate à discriminação direcionada à comunidade LGBTQIAPN+ e às mulheres.

O artigo 3º agrava ainda mais o cenário: determina que as instituições de ensino informem previamente os pais ou responsáveis sobre quaisquer atividades que envolvam tais temas, sob pena de responsabilização civil e penal. Isso equivale a submeter o fazer pedagógico à autorização externa, como se o exercício docente fosse uma ameaça em potencial.

Essa concepção configura um grave atentado à autonomia docente e ao direito de cátedra, consagrado pela Constituição Federal de 1988, que assegura, em seu artigo 206, inciso II, a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”. 

Trata-se de um princípio constitucional do ensino, que garante aos profissionais da educação a liberdade acadêmica necessária ao pleno desenvolvimento de suas atividades, sem censura nem ingerência ideológica — inclusive por parte do próprio Estado.

É, portanto, uma interferência indevida e perigosa no espaço educativo, como evidencia o seguinte exemplo: se um professor de Língua Portuguesa desejar trabalhar com seus alunos o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2023 — “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil —, ele deverá, de acordo com a nova lei, solicitar o consentimento formal dos pais, uma vez que a temática aborda questões relacionadas ao papel social da mulher e às desigualdades de gênero.

Um dos textos motivadores dessa proposta de redação, de autoria da pesquisadora Bruna Pereira, trata justamente das percepções sociais sobre gênero e divisão do trabalho:

“A sociedade brasileira tem passado por inúmeras transformações sociais ao longo das últimas décadas. Entre elas, as percepções sociais a respeito dos valores e das convenções de gênero e a forma como mulheres têm se inserido na sociedade. Algumas permanências, porém, chamam a atenção, como a delegação quase que exclusiva às famílias — e, nestas, às mulheres — de atividades relacionadas à reprodução da vida e da sociedade, usualmente nominadas trabalho de cuidado”.

Ora, se até mesmo uma preparação séria e fundamentada para o Enem — maior exame educacional do país — passa a depender da anuência parental, corre-se o risco de inviabilizar o trabalho docente em sua essência formativa e crítica. Sob o pretexto de “proteger a infância”, fragiliza-se a autoridade do professor, reduzindo sua atuação a uma figura constantemente vigiada.

Outro exemplo que ilustra os impactos da nova legislação remonta a 2024, quando propus — em parceria com um colega — a disciplina eletiva Gênero e Raça entre Rimas”, numa escola da rede estadual de Vitória, cuja culminância foi a produção de um livro com poemas autorais elaborados pelos próprios estudantes.

A atividade possibilitou a construção de um conhecimento sensível e crítico, ancorado na expressão literária e na reflexão social. Por meio da criação poética, os estudantes exercitaram o protagonismo juvenil, ampliaram suas habilidades de escrita e revisão e dialogaram com temas relevantes à realidade contemporânea, contribuindo para a valorização da diversidade e para o fortalecimento da consciência cidadã.

Pai levando criança para escola
Foto: Canva

À luz da Lei nº 12.479/2025, uma proposta como essa estaria sob risco de censura prévia, exigindo-se, para sua realização, a autorização individual de pais que, muitas vezes, não possuem a formação pedagógica necessária para avaliar o mérito de ações educativas.

O campo do saber, da arte e do pensamento — territórios historicamente associados à emancipação — passa, assim, a ser cerceado por barreiras ideológicas disfarçadas de zelo moral.

Mais grave ainda é o fato de que a Lei 12.479/2025 contraria frontalmente o próprio Currículo do Espírito Santo e as políticas públicas estaduais voltadas à promoção da cultura de paz nas escolas. 

O Currículo do Espírito Santo reconhece oficialmente gênero e sexualidade como temas transversais, ao lado de questões como poder, diversidade cultural e étnico-racial.

Esses eixos formativos devem estar presentes em todas as áreas do conhecimento e em todas as etapas da educação básica, com diretrizes claras para sua inserção tanto em disciplinas específicas quanto em atividades interdisciplinares.

Além disso, a Portaria nº 101-R, de 17 de abril de 2024, instituiu o Programa “Educar para a Paz”, com o objetivo de fomentar o respeito mútuo, a valorização da diversidade e a resolução pacífica de conflitos. O próprio texto da portaria reconhece a importância da inclusão de conteúdos sobre direitos humanos, cidadania e convivência democrática no currículo escolar.

O documento oficial que institui o programa apresenta um conjunto de estratégias pedagógicas que podem ser adotadas pelos educadores, incluindo a inserção, nos currículos, de conteúdos relacionados à cultura de paz, à convivência democrática e à mediação de conflitos. 

Além disso, propõe a realização de ações extracurriculares, como rodas de conversa, oficinas, campanhas educativas e práticas restaurativas. Em síntese, trata-se de uma política pública orientada para o enfrentamento da violência e a promoção da equidade no ambiente escolar.

Diante disso, cabe uma provocação necessária: por que persiste a crença de que o professor representa uma ameaça moral às crianças e aos adolescentes? Por que se alimenta a fantasia de que o docente é um agente ideológico perigoso, capaz de desviar seus alunos do “bom caminho”, enquanto se ignora a influência avassaladora das redes sociais, da mídia e de outros espaços de socialização que escapam ao controle da escola?

Rejeitar o direito de cátedra é, em essência, negar ao professor seu papel de mediador do pensamento crítico e da formação cidadã. A escola não é uma extensão da moral familiar, mas sim um espaço público de diálogo, questionamento e construção coletiva de saberes.

A família pode — e deve — acompanhar o percurso educativo, mas não pode reduzi-lo a suas convicções particulares, sob pena de desfigurarmos a própria função da escola como instituição democrática.

Quando o espaço escolar se submete a filtros ideológicos privados, perde-se a possibilidade de formar sujeitos autônomos, reflexivos e socialmente comprometidos.

A educação, nesse contexto, deixa de ser um direito público orientado pelo interesse coletivo para tornar-se refém de moralismos seletivos e projetos autoritários de silenciamento.

Essa visão distorcida — que opõe o professor “doutrinador” ao aluno “ingênuo e manipulável” — fragiliza o reconhecimento social da docência e fomenta uma lógica punitivista e censora que compromete a liberdade de ensinar. O docente passa a ser tratado como suspeito, o aluno como objeto a ser protegido, e a escola como palco de disputa moral.

Não por acaso, têm se multiplicado políticas de incentivo à formação docente, como o programa Bolsa Mais Professores. O esvaziamento simbólico da profissão — somado à precarização das condições de trabalho e à vigilância ideológica — tem afastado os jovens da carreira. Mas de que adianta incentivar o ingresso, se o exercício da profissão se torna insustentável?

É preciso reafirmar: nem sempre o conteúdo abordado em sala de aula estará em consonância com os valores de todas as famílias — e isso não é um problema. É um reflexo saudável da pluralidade social. Cabe à escola promover o debate com fundamentos pedagógicos e científicos. Cabe à família dialogar com seus filhos. Cercear o trabalho docente em nome da moral familiar é subverter o papel da escola e violar o direito à educação laica, plural e crítica.

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Essa análise nos remete à mensagem central de José Saramago em “Ensaio sobre a Lucidez”, obra em que o autor retrata uma sociedade que opta, em massa, pelo voto em branco como forma de protesto cívico. Diante dessa “epidemia branca”, o Estado reage com repressão, revelando sua intolerância à consciência crítica. Em Saramago, a pior cegueira não é a dos olhos, mas a das mentes que se recusam a ver — um retrato que dialoga com os mecanismos contemporâneos de silenciamento e controle do pensamento.

O cerceamento ao direito de cátedra é, precisamente, essa cegueira institucionalizada: a recusa deliberada ao pensamento autônomo, à divergência e ao exercício da lucidez. Ao impedir que o professor exerça seu papel com liberdade e responsabilidade, nega-se à sociedade a possibilidade de ver com outros olhos, de pensar por outro prisma.

Sobre a Lei 12.479/2025, cabe judicialização, dada sua evidente inconstitucionalidade. E, diante de toda a reflexão aqui apresentada, encerro com um poema de Nicoly, aluna do Ensino Fundamental II e participante do projeto “Gênero e Raça entre Rimas”.

Sua voz jovem e crítica rompe o silêncio imposto por legislações autoritárias e dá forma, por meio da poesia, ao que muitos ainda se negam a enxergar:

Sociedade

Mesmo depois de anos

A sociedade não para

Já tentamos mudar os planos

Nada mais prepara

A mulher maltratada

Recatada

Arrebatada

Que é vista como um convite

Ou qualquer coisa que hesite

Sem direito de falar

Sem direito de amostrar 

Que é vista como objeto

E se obriga a ser secreto

Caminhando sempre com medo

Pra não ser feita de brinquedo.

Larissa O’Hara

Colunista

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Revisão de Texto e Educação Especial. Professora há mais de 15 anos, atuou em diversas instituições e orientou centenas de alunos na preparação para a redação do Enem. Autora de variados livros. É professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Revisão de Texto e Educação Especial. Professora há mais de 15 anos, atuou em diversas instituições e orientou centenas de alunos na preparação para a redação do Enem. Autora de variados livros. É professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).