Mulher com dúvidas
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Na graduação, cursando uma licenciatura, ninguém nos avisa — mas o maior perigo da carreira docente atende pelo nome de cinismo. Aqui, tomo a liberdade de usar “C” maiúsculo, como se fosse uma figura personificada que nos espreita pelos corredores da profissão.

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Naquela época de universidade, o que ouvi foram outras advertências: “Você vai passar fome”, “Vai se estressar”, “Vai adoecer”… Mas ninguém dizia: “Cuidado com o Cinismo”— ele se aproxima devagar, se instala aos poucos e pode nos corroer por dentro.

Esse risco se torna mais real com o passar dos anos. No início da carreira, o professor está em fase de descoberta profissional: estuda intensamente, prepara materiais, experimenta novas metodologias. Porém, com o tempo, o entusiasmo pode dar lugar a rotinas repetitivas, burocracias sufocantes, frustrações acumuladas.

Ser professor, sobretudo no Brasil, é uma tarefa complexa. A categoria sofre desvalorização social, enfrenta baixos salários, lida com salas lotadas e, muitas vezes, não conta com infraestrutura adequada para o exercício da profissão. Soma-se a isso uma nova questão geracional e tecnológica que interfere diretamente no processo educativo. 

Essas condições podem levar à despersonalização, contribuindo para o esgotamento profissional (burnout) e para quadros de ansiedade e depressão. É então que o Cinismo surge, sorrateiro, como uma sombra persistente. Ele distorce o rosto do professor: o entusiasmo dá lugar ao desdém, a paixão vira frieza, e a presença em sala se torna mera obrigação.

É como o espectro de Jacob Marley que assombra Scrooge em Um conto de Natal, trazendo o peso de todas as decisões e desistências acumuladas. Só é possível deter essa entidade silenciosa quando se reconhece sua presença — e se resgata, em meio ao desgaste, algum sentido para seguir adiante.

A jornada docente

Carl Jung, em 1926, descreveu o que chamou de “período perigoso” — fase da vida adulta em que, entre os 37 e 45 anos, as pessoas costumam revisitar suas trajetórias com espírito crítico.

Mais do que avaliar conquistas, esse processo confronta desejos, frustrações e expectativas internalizadas. A crise emerge quando as realizações concretas não correspondem às expectativas idealizadas.

No magistério, esse processo é particularmente delicado. Após 15 ou 20 anos de sala de aula, a perspectiva de mais duas décadas de trabalho sem grandes mudanças pode gerar paralisia. O risco é cair no ciclo do desânimo — sobretudo diante de colegas que já sucumbiram à rotina e à descrença.

O pesquisador Michael Huberman na profundou esse olhar ao investigar o ciclo de vida profissional docente. Em O ciclo profissional dos professores (1989), ele analisou as diferentes fases da carreira docente — do entusiasmo inicial à desilusão — e defende a importância do apoio contínuo e da formação permanente como estratégias de sustentação.

Superar os momentos de esgotamento, segundo Huberman, exige reconhecer as mudanças subjetivas que acompanham cada fase da vida profissional. Se esse momento for enfrentado com serenidade, pode conduzir ao que o autor chama de “desinvestimento sereno” — uma aceitação positiva e madura da própria trajetória.

Do contrário, o enfrentamento mal resolvido pode resultar na “sensação de desespero”, expressão usada por Erikson para descrever um estado de estagnação emocional e existencial, marcado pelo que Huberman denomina “desinvestimento amargo”.

É nesse cenário que o professor precisa redobrar a atenção aos sinais de desgaste ou, poeticamente falando, tomar consciência da presença de sua própria sombra. Quando a paciência com os alunos se esgota, o sorriso desaparece e o envolvimento com a vida das crianças se enfraquece, algo está fora do lugar.

Essa crise gera distanciamento afetivo e uma descrença crescente no próprio trabalho: “O que estou realmente fazendo aqui?” Já vi (e vivi) essa sombra de perto. E foi nas escolas da periferia da minha cidade que ela se tornou mais nítida.

Será que preciso mesmo mudar de carreira?

Enfrentei minha própria sombra ainda jovem. Depois de anos lecionando de forma produtiva e comprometida — preparando alunos para vestibulares e concursos —, aceitei o desafio de atuar na rede pública estadual. Foi ali que vivi um dos maiores confrontos internos da minha trajetória: o encontro direto com o Cinismo.

Eu era a mesma professora — aquela que já havia lecionado com competência e seriedade —, mas, naquele novo cenário, sentia que já não conseguia ensinar aquilo que era o centro do meu ofício: a Língua Portuguesa. Quando os alunos não aprendem, você começa a duvidar de si. Talvez a falha esteja no método. Ou na postura. Ou na própria capacidade. 

Antes do finismo, chega a frustração. E ela não bate à porta com delicadeza. Eu me perguntava: o que fazer quando não consigo cumprir aquilo que me cabe? Será que sou especializada demais para a realidade dos meus alunos? Ou apenas incapaz de alcançá-los Cogitei abandonar a docência.

É preciso sabedoria para discernir

Pensar em abandonar a profissão não é, necessariamente, um gesto de desistência. Pode ser apenas o reflexo de uma inadequação entre o profissional e o ambiente em que atua.

Nesses momentos, mais do que refletir sobre o apreço pela área, é preciso avaliar se as condições de trabalho permitem que as competências sejam exercidas com dignidade e sentido.

Essa tensão entre vocação e contexto me remete a uma breve fábula contemporânea, de autoria desconhecida: o conto do violinista. Diz-se que um músico renomado, acostumado a grandes plateias e cifras milionárias, decidiu certa vez tocar no metrô.

Postou-se como um artista de rua, com seu estojo aberto no chão, e executou as mesmas peças que costumava apresentar nas salas de concerto. Poucos o notaram. Raras foram as moedas recebidas. A indiferença imperou. A moral é simples, mas aguda: o reconhecimento também depende do cenário. Não basta tocar bem — é preciso estar no lugar certo.

Essa imagem reverberou em mim durante o período em que atuei na rede estadual. Sentia-me como o violinista no metrô: esforçada, tecnicamente preparada, mas invisível. Havia ali um descompasso entre a densidade do que eu oferecia e as condições concretas de recepção.

Ainda que reconhecesse o valor dos meus alunos, era evidente que eles não reconheciam, com igual intensidade, o meu. E não era só isso: a própria estrutura institucional parecia indiferente. Faltava reconhecimento, escuta, suporte. Sustentar sentido naquele espaço exigia esforço contínuo — e, por vezes, doloroso.

Com o tempo, entendi que mesmo experiências desafiadoras contribuem para a formação de quem ensina. Foi ali que aprendi a lidar com a vulnerabilidade social, com a diversidade não nomeada, com os silêncios e as ausências que também habitam o ambiente escolar.

Nada disso é perda — tudo é aprendizado. É nesse ponto que Viktor Frankl me oferece uma chave interpretativa. Psiquiatra austríaco e sobrevivente do Holocausto, Frankl desenvolveu a Logoterapia, abordagem que propõe a busca de sentido como eixo da saúde psíquica.

Na obra Em busca de sentido, ele narra como suportou os campos de concentração a partir da construção de um “porquê” que justificasse sua sobrevivência. Essa reflexão reverbera com força no cotidiano docente. A precarização do trabalho, a sobrecarga, a invisibilidade, o peso da responsabilidade — tudo isso mina o sentido do fazer. E, sem sentido, o risco de adoecimento aumenta.

A sombra do Cinismo, mais uma vez, se aproxima. Recuperar o vínculo com o sentido não é um exercício de autoajuda. É uma estratégia de sobrevivência. Também é um ato político. Ao fazer a transição da rede estadual para a federal, percebi, com nitidez, como a valorização profissional altera a experiência de ensinar.

Por isso, antes de romper com a profissão, talvez valha considerar: o problema está no fazer ou no lugar onde se faz? Trocar de carreira é uma decisão legítima, mas que exige reflexão, pois implica rupturas e recomeços.

Em alguns casos, o movimento necessário não é abandonar a área, mas reposicioná-la em outro cenário. Nem sempre, no entanto, mudar de lugar é possível. Há quem permaneça por necessidade, por falta de alternativa imediata. Nesses casos, a luta é outra: passa a ser a luta para que as condições mudem.

Enquanto isso, é preciso manter-se vigilante. A sombra do Cinismo ronda — discreta, persistente. Reconhecê-la é o primeiro passo; resistir a ela, uma necessidade cotidiana. Agir com lucidez, fazer o possível, preservar a esperança — esse é o desafio; porque, como afirmou Viktor Frankl, o que sustenta o ser humano não é a ausência de dor, mas a presença de sentido.

Larissa O’Hara

Colunista

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Revisão de Texto e Educação Especial. Professora há mais de 15 anos, atuou em diversas instituições e orientou centenas de alunos na preparação para a redação do Enem. Autora de variados livros. É professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Revisão de Texto e Educação Especial. Professora há mais de 15 anos, atuou em diversas instituições e orientou centenas de alunos na preparação para a redação do Enem. Autora de variados livros. É professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).