Sonhar é coisa séria entre crianças. Às vezes, elas desenham o futuro com lápis de cor; noutras, com palavras apressadas em folhas de caderno. Sonham alto, com brilho nos olhos, como quem tenta alcançar o céu com os pés ainda descalços.
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E nesse exercício de projetar o amanhã, constroem castelos, vestem camisas de times famosos, imaginam aplausos em estádios lotados. Sonhar, afinal, é intuir um destino — mesmo quando o presente é apertado demais para caber tanto desejo.
Lembro-me de quando ministrava a disciplina Projeto de Vida para alunos do ensino fundamental da rede pública estadual — meninos e meninas cujas histórias carregavam, muitas vezes, a marca da escassez, seja ela econômica ou afetiva.
A disciplina nasceu como resposta às mudanças recentes na educação brasileira, em consonância com a Base Nacional Comum Curricular e a Lei nº 13.415/2017, que redesenhou o Ensino Médio.
No Espírito Santo, essas diretrizes chegaram também ao ensino fundamental, como parte de uma política educacional voltada à formação de sujeitos capazes de traçar os próprios caminhos.
O propósito era ambicioso: preparar os jovens para escolhas conscientes, ajudá-los a enxergar a si mesmos com mais clareza, reconhecer seus desejos, entender que um projeto de vida não se constrói apenas com circunstâncias, mas também com decisões.
Em uma dessas aulas, dentro do eixo temático “Sonhar e planejar o futuro”, propus um exercício aparentemente simples aos alunos: escrever sobre si mesmos e sobre os caminhos que gostariam de seguir.
Era um convite à introspecção, um modo de fazer com que mapeassem não apenas seus desejos, mas também as potências que traziam consigo.
Um sonho se repetia entre os meninos
Foi então que percebi algo curioso. Independentemente da turma, das histórias, do tom das redações, havia um sonho que se repetia entre os meninos: ser jogador de futebol.
“O meu sonho é ser jogador de futebol e também jogar ao lado do meu ídolo Neymar”; “Dar uma casa para a minha mãe e para o meu pai”; “Ganhar um hexa para o meu país Brasil”; “Jogar em dois dos melhores times do mundo, o Flamengo e o Real Madrid”, “Quero uma libertadores e uma Champions League”; “Usar a lendária camisa 10 de Pelé” — essas eram algumas das falas recorrentes.
Não é segredo para ninguém que muitos meninos sonham em ser jogadores de futebol. Mas ver esse desejo repetido em tantas folhas de caderno, em caligrafias apressadas e cheias de esperança, fez-me pensar no que realmente estava por trás dele.
Eu, que pouco entendo de futebol, logo percebi que ele é mais do que um esporte para esses meninos — é um horizonte, uma porta entreaberta para um mundo maior.
Nos textos, ser jogador não era apenas correr atrás de uma bola — era correr atrás de um destino novo.
Era a chance de ser rico, de comprar uma casa para a mãe ou para a avó, de dirigir um “carrão”, de deixar para trás as ruas estreitas da infância e encontrar, enfim, um caminho onde a vida pudesse ser ampla e generosa.
Entre a ilusão e a possibilidade
Mas qual é a real chance de se tornarem jogadores tão famosos e bem-sucedidos quanto seus ídolos?
Esse questionamento me fez lembrar de um texto que li certa vez, uma daquelas referências que somem da memória, mas deixam marcas. Nele, um professor de Escrita Criativa relatava sua experiência em sala de aula.
No início de sua carreira, ele costumava dizer, já na primeira aula do curso, que era improvável que dali saísse um escritor reconhecido, pois viver de literatura era algo raro. E de fato é, se nos ativermos aos números.
Ele acreditava estar sendo realista, mas ao longo do tempo percebeu que, ao ouvir aquilo, seus alunos encolhiam nos assentos com uma frustração irremediável. O entusiasmo se apagava, portanto.
Então, ele repensou sua abordagem — afinal, nós, professores, estamos sempre revisando nossas práticas — e concluiu que, ainda que fosse verdade, não cabia a ele destruir sonhos.
Nunca me esqueci dessa história. E prometi a mim mesma que jamais ocuparia esse lugar — de quem apaga a centelha da esperança, ainda mais nos olhos de crianças e adolescentes.
Por mais cética que eu possa ser, nunca direi a uma criança que seu sonho é inalcançável. Pelo contrário: digo que é importante estudar, que vale a pena sonhar, que o desejo de um futuro melhor é legítimo.
Porque, como disse no início deste texto, não há nada mais valioso do que o brilho nos olhos de quem sonha.
Ser um menino brasileiro e pobre é, muitas vezes, sonhar com um futuro em que tudo é possível — em que se é amado, valorizado, ouvido. O futebol, nesse contexto, não se trata apenas de uma paixão: é uma linguagem de esperança.
E então me vem à mente uma frase atribuída a Fernando Sabino: “Quando eu era menino, os mais velhos perguntavam: o que você quer ser quando crescer? Hoje não perguntam mais. Se perguntassem, eu diria que quero ser menino”.
Talvez devêssemos, todos nós, reaprender o que é ser menino. Relembrar que, quando somos pequenos, projetamos cenários, arquitetamos possibilidades, tateamos caminhos ainda não trilhados.
Olhar para o futuro com os olhos cheios de sol
Ser menino é acreditar que tudo pode ser diferente — e melhor. É olhar para o futuro com os olhos cheios de sol, mesmo quando tudo ao redor parece nublado.
E talvez, ao nos lembrarmos disso, sejamos mais capazes de ensinar não apenas limites, mas as muitas possibilidades que a vida oferece.
Sonhar é esboçar um destino, intuir a própria forma antes mesmo de existir por inteiro. Afinal, ser menino — e ousar sonhar com o impossível — é mágico.
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