Livro reúne críticas de Jefferson Del Rios
O teatro, assim como outras manifestações artísticas (como dança e shows de música), vive do efêmero: o registro resiste na memória de quem viu. Assim, para efeito histórico, a visão crítica torna-se essencial também como documento. Jefferson Del Rios iniciou a carreira de crítico teatral em 1969 e, desde então, acompanhou, com olhar arguto, a evolução cênica. É o que comprova Teatro, Literatura, Pessoas (Edições Sesc), livro que será lançado nesta terça-feira, 10, e que compreende, além do teatro, entrevistas com escritores fundamentais como os portugueses José Saramago e António Lobo Antunes. Boa parte desse material foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo. Sobre esses mais de 50 anos, Del Rios respondeu as seguintes questões.
Nesse período como crítico teatral, quais foram os avanços dramatúrgicos que mais te surpreenderam? Por que?
As liberdades espaciais e plásticas que romperam o palco italiano, com sua quarta parede. Os brasileiros sempre foram audaciosos neste campo como também há excelentes diretores fiéis a este espaço cênico clássico e à valorização integral dos textos fundamentais. Acho boa a existência pendular das duas tendências. Mas, tentando um resumo, o forte da atual dramaturgia é a solidão das grandes cidades, os perdidos na noite, como já anunciou Plínio Marcos. Um teatro atento aos desvalidos da economia e dos muitos preconceitos culturais.
Como era escrever crítica teatral durante o regime militar e sua censura?
Na época, a política (o noticiário e os articulistas) era o que mais ocupava a ditadura, mas houve um endurecimento posterior e tínhamos que ter cautela. Por exemplo, quando escrevi sobre Na Selva das Cidades, de Brecht, no Teatro Oficina, em setembro de 1969, Cláudio Abramo, diretor da redação da Folha de S.Paulo, com sua experiência, me advertiu que o texto, exaltado, era um chamariz para a censura. Entendi e diminui certos adjetivos, mas a crítica, altamente elogiosa, foi publicada.
Todos temos dramaturgos brasileiros preferidos - o meu é Jorge Andrade. E o seu?
Concordo plenamente quanto à obra de Jorge Andrade e acrescento Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e, a seguir, José Vicente de Paula, Leilah Assumpção, Antônio Bivar, Mário Prata, Maria Adelaide Amaral. Outra vez, poderá haver esquecimentos, sobretudo quanto à novíssima geração: Dib Carneiro, Otavio Frias Filho e Aimar Labaki, por exemplo. E continuo em falta.
Fale de seus mestres na crítica teatral.
Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, ambos do jornal O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, são referências maiores. Mesmo antes de me imaginar crítico, mas como espectador assíduo, eu já era leitor deles. Quando comecei a escrever, em 1969, na Folha, meus guias iniciais foram os volumes hoje já bem gastos, mas guardados com cuidado, Panorama do Teatro Brasileiro, do Sábato, e Teatro em Progresso, do Décio - aliás, todo Suplemento Literário do Estado era leitura obrigatória. Mas também devo muito a Anatol Rosenfeld, Jacó Guinsburg e sempre acompanhei Yan Michalski, no Jornal do Brasil. Sem esquecer a alta crítica estrangeira, uma coleção coordenada por Paulo Francis para a Editora Zahar com os norte-americanos Eric Bentley, Martin Esslin, de franceses como Bernard Dort, Bertrand Poirot-Delpech, Georges Banu, Odette Aslan, o espanhol José Monleón e o português Carlos Porto, que trabalhou debaixo da sinistra ditadura de Salazar enquanto seu conterrâneo, exilado, João Apolinário, fazia o mesmo, em São Paulo, no jornal Última Hora. A lição de Porto de como se atua em tempos de repressão está nos dois volumes de suas críticas Em Busca do Teatro Perdido.
Como crítico, você acompanhava a criação de alguns espetáculos (assistindo a ensaios, por exemplo) até finalmente ver o produto pronto ou via apenas a montagem concluída para então fazer a crítica?
Sempre vi os espetáculos prontos, no palco. Não me faltava curiosidade, mas é mais frequente o diretor ter ensaios fechados com o elenco. Cheguei a discutir o assunto com Antunes Filho. Em Paris, Peter Brook, por gentileza com o brasileiro, me permitiu acompanhar uma fase de suas instruções aos artistas.
Comentários de atores e diretores também são fonte de ensinamento para um crítico. Quem você destacaria?
Para mim, logo no meu início, ainda como espectador, foram momentos de encantamento e aprendizado assistir, no Teatro Oficina, Raul Cortez, Eugênio Kusnet, Célia Helena e Miriam Mehler em Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, e Andorra, de Max Frisch, outro sucesso do Oficina; assim como Rubens Correa, Fauzi Arap que, além de diretor, era um ator carismático, Juca de Oliveira, Paulo Autran, Emílio Di Biasi, Othon Bastos, Sérgio Mamberti, Stênio Garcia, Luís Damasceno, Renato Borghi, Gianfrancesco Guarnieri. É de justiça lembrar atores que valorizam papéis pequenos, como Renato Dobal e Gésio Amadeu. Entre as atrizes, Cacilda Becker, em Quem Tem Medo de Virginia Woolf? e Esperando Godot, é uma lembrança perene, além dos grandes momentos de Fernanda Montenegro, Marília Pêra e Lélia Abramo, Isabel Ribeiro e Dina Sfat. É claro que haverá aqui esquecimentos.
E os diretores?
Entre eles, José Celso Martinez Corrêa, Antunes Filho, Augusto Boal, Ademar Guerra, Ivan de Albuquerque e Amir Haddad. Pode-se falar longamente da ação renovadora brilhante de todos eles. Entre os estrangeiros, os poloneses Tadeusz Kantor, com a extraordinária A Classe Morta, e Jerzy Grotowski; os franco-argentinos Jorge Lavelli (dirigiu, no Rio, A Gaivota, de Chekhov, com Renata Sorrah, Sérgio Brito e Tereza Rachel), Jerome Savary (dirigiu, em São Paulo, Os Monstros, de Denoy de Oliveira) e Victor Garcia, de quem escrevi a biografia A Vida Sempre em Jogo. Victor marcou profundamente o teatro brasileiro com suas revolucionárias encenações de Cemitério de Automóveis, de Arrabal (1968) e, sobretudo, O Balcão, de Jean Genet (1970). Não estou, claro, me referindo à ótima geração atual, posterior ao bons currículos de José Possi Neto e Gabriel Villela e outros, como Antonio Araujo, Filipe Hirsch, Eduardo Tolentino, Cibele Forjaz, Rodolfo Garcia Vasquez e Ivam Cabral à frente do grupo Os Satyros, Newton Moreno e Gerald Thomas, entre tantos outros. Seria uma lista enorme. É claro que incorro em esquecimento. Porque temos muito a dizer, por exemplo, do teatro popular e de periferia e seu pioneiro Cesar Vieira com o grupo União e Olho Vivo. Paralelamente, foi enriquecedora a amizade com animadores culturais ímpares como Paschoal Carlos Magno, criador do Teatro do Estudante do Brasil, que revelou Sérgio Cardoso, e dono de uma prosa e memória admiráveis, e a corajosa e solidária Ruth Escobar, a quem devemos a vinda de diretores de fora e o Festival Internacional de Teatro.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.