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Cia. Lia Rodrigues de dança traz espetáculo "Pindorama"

São Paulo - Desprender-se da tirania da busca do significado e deixar-se apreender pela imagem espantosamente bela de cada cena. Permitir que o olhar se aproxime sem já saber, deixando passar a curiosidade antes da certeza do discurso que inventa o seu objeto, para, então, poder, de fato, encontrar Pindorama, o mais recente trabalho da Lia Rodrigues Companhia de Danças, que acaba de se apresentar no Sesc Pompeia.

Os europeus ainda não chegaram. Estamos em Pindorama, o nome indígena do "Brasil antes de Cabral", como diz a canção do Palavra Cantada. Um rio começa a ser aberto para virar mar, virar mundo (com gestos coreografados, um plástico de 20 metros é desdobrado). O limite físico das suas margens se expande e termina conectando o espaço inteiro. A sua água reaparece na forma de mônades (enchendo camisinhas-bolas) e de cachoeiras individuais (sendo derramada de garrafas pet pelos bailarinos sobre si mesmos).

Formam-se, à princípio, pequenas poças, que também alastrando seus contornos porque são levadas ao encontro umas das outras, nos corpos dos bailarinos-peixes.

Sem olhar para o público ou para onde se deslocam, parecem atender a alguma convocação irrecusável. Repropõem outro modo de tentar subir contra a correnteza, na resistência que estava em Piracema (2012) e transformam os rápidos jorros de corpos sobre a plateia que a colocava na defensiva de Aquilo de que Somos Feitos (2000) em acordos silenciosos baseados na percepção em estado de prontidão constante.

Ninguém está a salvo. Nada permanece como começa. Essa é uma dança sem bastidores, que rasga a lógica do visível-legível com a força das associações entre violência e beleza com que constrói cada cena. Continuar a debater-se, insistir, forçar como quem tenta cavar uma brecha, mas não para sair, e sim para encontrar o outro. Não há como escapar. A água volta para ocupar todo o espaço, mesmo depois de ser secada. É inútil apagar os vestígios da violência porque ela se incrustou nos corpos.

Eles a carregam também quando ficam em estado larvar de movimento, em uma violência-lentidão da qual se desprendem pequenos gestos, que começam como pulsações, arfares, e terminam em explosões de deslocamentos. Nesse processo, desenham as conexões que permitem o encontro não somente dos bailarinos entre eles (que não se veem), mas também com os que os observam que, agidos pela necessidade de também se moverem, esbarram uns nos outros, exploram novos lugares de onde continuar a ver.

O embate sustenta a possibilidade do encontro. Ele é uma rasgadura à Lúcio Fontana (1899-1968), que faz irromper uma terceira dimensão nas telas que Lia Rodrigues e seu elenco coeso, consistente e profundamente engajado no que faz pintam, com precisão e minúcia, em cada um das cenas deste trabalho.

Na primeira, a mais impactante, por nos fazer entender placidez e violência como complementares, codependentes, uma única bailarina enfrenta uma tormenta que tem a dramaticidade das telas de William Turner (1775-1851).

Duas bailarinas se revezam no papel: Amalia Lima e Gabriela Nascimento, e ambas atestam, com a excelência de suas atuações, que é a combinação do tempo com a dedicação que gesta intérpretes de primeira grandeza. E deixam claro também que há algo de muito potente no que fazem, na qualidade dos materiais com que trabalham. Um bom exemplo disso está em Dora Selva que, com tão pouco tempo de convivência, começa a adentrar nos pesos espessuras da dança da cia. Lia Rodrigues.

Embora Pindorama encerre a trilogia composta por Pororoca (2009) e Piracema, parece nos dizer que não existe saída nem fim. O que vai nos desconectar de Pindorama é a invasão do escuro de um blackout que nos coloca na posição de não ver em que os bailarinos estiveram todo o tempo. Aqueles bailarinos se amontoam como se emaranhados de mãos, ombros, pernas nos fitassem de um canto de um aquário. De lá, nos enlaçam com esse não ver que faz parte do ver. A eficácia das imagens que criaram até aquele momento funciona como anteparo: com elas não podemos nos fundir, delas não podemos nos afastar. Grudam em nós, trazendo o que estava despercebido.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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