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O antológico 'Rosa de Ouro' é homenageado em 4 noites no Rio

Redação Folha Vitória

São Paulo - Mais do que susto, foi um assombro. Ao ouvir aquela senhora de 63 anos cantar em um restaurante no bairro da Gloria, na zona sul do Rio de Janeiro, veio tudo à tona. O estranhamento que sinalizava paixões, capaz de tirar as coisas do lugar e deturpar a própria beleza, era tudo o que o garoto queria sentir de novo. Garoto nem tanto. Hermínio Bello de Carvalho tinha 29 anos e um ouvido atento para tudo o que saísse do comum. Ele já havia estranhado o timbre de Aracy de Almeida, as frases de Louis Armstrong e a dor de Billie Holiday. Já havia se inebriado da sinistra fluência de Cartola e da força demoníaca do flamenco de Pastora Pavon, "La Niña de los Peines", que viu cantar em uma célula do Partido Comunista em Santa Teresa.

Mas agora Hermínio estava diante de um abalo sísmico que ele jamais vira. A senhora que havia passado seus 20 últimos anos como empregada doméstica parecia ganhar ainda mais força quando ficava claro de que ela mesma não tinha a menor ideia do que sua voz poderia fazer.

Clementina de Jesus seguiu com Hermínio e, dois anos depois, em 1965, seria lançada por ele para o mundo. O espetáculo que a colocou em cena recebeu o nome de Rosa de Ouro e se tornou um conquista histórica. Clementina tinha a seu lado Araci Cortes, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Paulinho da Viola, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho. Contra ela, um Brasil que parecia querer esquecer tudo o que tinha cheiro de terra. "Imagine que aparecemos em uma época em que as referências eram ainda as estéticas da Bossa Nova e da Jovem Guarda", lembra Hermínio.

Os 50 anos do Rosa de Ouro será revivido em uma série de shows que começa nesta terça-feira, 12, no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro. Sua versão atualizada terá direção artística de Gustavo Guenzburger e direção musical, arranjos e acompanhamentos do Grupo Samba de Fato (que tem Alfredo Del-Penho, voz e violão; Pedro Amorim, voz e bandolim; Pedro Miranda, voz e percussão; e Paulino Dias, também voz e percussão). Nos shows desta terça, 12, e quarta, 13, e dias 19 e 20, um coletivo de cantores e cantoras atualizam o repertório do Rosa, que seria posteriormente lançado em dois LPs. Sambas como o título Rosa de Ouro (de Elton Medeiros, Paulinho da Viola e Hermínio Bello), Batuque na Cozinha (João da Bahiana), o samba-canção Linda Flor (de Henrique Vogeler, Luís Peixoto e Marques Porto) e Benguelê (de Pixinguinha e Gastão Viana). Entre as vozes, estarão as de Nilze Carvalho, Mariana Baltar, Áurea Martins, Ana Costa e Marcos Sacramento, quem Hermínio considera "a melhor do País".

Rosa de Ouro, o original, realizou outras proezas além de mostrar ao Brasil que ele tinha uma mulher de nome Clementina de Jesus. "Até os críticos de música erudita se renderam a ela. Aquela afinação absoluta, o timbre inigualável, a voz volumosa", diz Hermínio. Seu espetáculo foi a vitória de outras improbabilidades. "Fizemos aquilo com pouquíssimos recursos." A produção modesta foi pensada para ficar em cartaz por um mês, algo que se estendeu e se estendeu por clamor popular e terminou ficando nos palcos por um ano, antes de sair para ser apresentado em outras cidades.

Aos 80 anos, Hermínio Bello não amansa a alma. O sentimento de resistência que esteve no esboço de Rosa de Ouro aparece algumas vezes mesmo em uma conversa por telefone de vinte minutos. Primeiro, quando se lembra de que o centenário de Aracy de Almeida (1914-1988) passou em silêncio constrangedor ao mesmo tempo em que o de Billie Holliday não para de ganhar (justas) homenagens. A questão não é lembrar Billie, mas esquecer Aracy. Ele mesmo tentou disfarçar a injustiça em seu espetáculo estreado em 2014, Aracy de Almeida, A Rainha dos Parangolés, com músicas interpretadas por Marcos Sacramento. Hermínio deixa no ar também a insatisfação pela ausência no mercado dos dois discos sobre o Rosa. "Como pode, em ano de centenário, a gravadora não ter relançado isso."

Além dos shows, o projeto propõe um ciclo de debates com participação do produtor. Origens do Rosa: o Zicartola e o Ambiente Musical do Rio em 1965 será o primeiro, nesta terça-feira, 12. Popular e Erudito: o Formato Mágico do Rosa de Ouro, nessa quarta, 13, diz sobre outra barreira que a força de Hermínio e Clementina ajudaram a derrubar. Ali, diferente da Bossa e da Jovem Guarda, o território era livre. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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