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'O Capote' trata da relação entre o comando e a submissão na sociedade

Redação Folha Vitória

São Paulo - "Todos nós saímos do Capote de Gogol", afirmou, certa vez, o escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881). Ele se referia ao conto O Capote, de Nikolai Gogol (1809-1852), que teve um papel de destaque no desenvolvimento da literatura russa a partir do século 19 por causa de seu cunho social. A forma como ele trata a relação entre a condição humana e as imposições da sociedade sempre fascinou o ator Rodolfo Vaz, que, depois de contagiar uma legião de amigos com sua disposição de levar a história para o palco, estreia nesta sexta, 24, O Capote, no Centro Cultural Banco do Brasil.

Trata-se de uma versão com toques modernos do clássico texto escrito em 1842. Vaz interpreta Akaki Akakievitch, escrevente de uma repartição pública de São Petersburgo que precisa se submeter a severas restrições a fim de conseguir economizar dinheiro para comprar um novo capote. Ao longo do doloroso processo de privação, ele é assediado por dois homens (Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas), que explicitam os vícios e abusos do interior de sua alma, humilhada e atravancada por emoções contraditórias.

"A ironia do texto original migra para os narradores", conta a diretora Yara de Novaes, que já trabalhou antes com a obra de Gogol, em O Inspetor Geral. "Eles trazem a voz do nosso tempo." A decisão de incluir novos personagens modificou uma possibilidade de a peça ser um monólogo, em versão criada por Drauzio Varella. A aproximação do médico e escritor ao projeto começou há, pelo menos, seis anos.

Na época, Vaz participava da peça Por Um Fio, inspirada em obra de Varella e também interpretada por Regina Braga. "Certa noite, durante um jantar, comentei com ele meu desejo de montar um espetáculo inspirado no conto Capote", conta o ator. "Ele não pensou duas vezes e disse: ‘vou adaptá-lo para você’." Na data combinada, Vaz recebeu o presente: o dilema vivido por Akaki, um dos pilares do realismo russo do século 19, foi habilmente transformado em um monólogo.

Mesmo feliz com o trabalho, o ator não conseguiu dar início no projeto. O tempo passou e, ao surgir a oportunidade de montar no Centro Cultural Banco do Brasil, a ideia ganhou força. "Quando um artista escolhe esse ou aquele texto para uma adaptação teatral, a escolha se dá primeiro porque aquela obra gera grande prazer estético e filosófico e também porque ela tem a vocação para ser matriz de um processo muito livre e amplo de criação teatral. Um processo que, do começo ao fim, terá os genes daqueles artistas que compõem o coletivo teatral", comenta Rodolfo Vaz.

Ele se uniu aos colegas Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas, além da diretora Yara de Novaes. Juntos, decidiram que o texto incorporaria mais personagens - na verdade, narradores que fizessem a passagem temporal entre o século 19 e os dias atuais. Assim, seria preciso adaptar o texto de Drauzio Varella, o que foi feito por Cássio Pires. "Além dessa atualização, o projeto incluiria também uma musicista que se apresentaria ao vivo e projeções de vídeos", conta Pires. "Como grande admirador da obra de Gogol, não poderia desvirtuá-la. Assim, propus transferir o problema de Akaki para os dias de hoje, ou seja, manter a narrativa sob o olhar arguto e sensível de Gogol, mas com uma ambientação moderna."

Para que a coerência fosse mantida, sem que a união de passado e presente causasse estranheza, o grupo iniciou um precioso trabalho de imersão, simpaticamente chamado de Vestindo o Capote - o início dos ensaios coincidiu com uma série de encontros com quatro estudiosos de áreas distintas, dispostos a falar sobre o conto e sua forma satírica de retratar a Rússia do século 19.

A professora e pesquisadora russa Elena Vássina comentou o texto com foco nas referências escolhidas por Gogol, elementos escolhidos por ele para a narrativa; já o filósofo Mario Sergio Cortella caminhou para uma discussão mais filosófica, passando por conceitos etimológicos; enquanto o teatrólogo Fernando Bonassi trouxe provocações para o aspecto dramatúrgico; e, por fim, a diretora Cristiane Paoli Quito trabalhou com os atores uma visão física do texto, no corpo dos intérpretes.

"Ela ajudou muito na composição clownesca do personagem do Rodrigo e sua dificuldade de relacionamento com seu entorno", explica Yara. "Essa fase do processo trouxe uma certeza sobre a montagem: Akaki não é um sujeito que conta a própria história, os outros não permitem isso, a identidade do Akaki é dita por outros, foi essa descoberta que nos levou a inserir os dois narradores."

Para Cássio Pires, os encontros permitiram ainda definir a relação de poder e submissão que se estabelece entre Akaki e seus dois colegas que, na verdade, podem ser vozes martelando sua consciência. "O que me atrai no texto de Gogol é o ponto de vista do narrador, ou seja, alguém do interior questionando a cidade grande", diz o dramaturgo. "E que os narradores fazem com Akaki seria hoje interpretado como bullying", completa Rodrigo Fregnan.

De fato, o texto de Gogol sobre uma pessoa comum desponta como uma meditação sobre a identidade e estabelece uma espécie de diálogo subterrâneo entre o romance moderno e a subjetividade. Essa relação é acentuada pela videoarte projetada em cena e criada por Rogério Velloso e a música criada por Dr Morris e interpretada também ao vivo por Sarah Assis. "A história pode ser desdobrada de várias formas", observa Velloso, que recebeu o aval de Yara de Novaes. "O que realmente me interessa são as várias instâncias narrativas aqui reunidas: teatro, vídeo, música, cenário." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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