Espetáculo 'Cenas de Uma Execução' inicia temporada em novo palco
São Paulo - Primeira mulher a ser admitida na Academia da Arte do Desenho de Florença, em 1616, Artemisia Gentileschi (1593-1652/3) foi também a única pintora barroca do círculo de seguidores de Caravaggio. Uma de suas obras-primas, Judith e Holofernes, que retrata um tema bíblico - e típico - da pintura do século 17, a brutal cena da heroína que degola o general assírio com uma espada, está na Galleria degli Uffizi, um dos templos da pintura italiana, justamente ao lado de obras do maior artista barroco. Entretanto, Artemisia é geralmente apresentada, de forma apressada, como a filha do pintor Orazio Gentileschi.
O que significa, mais ainda, dizer que Artemisia foi vítima de um estupro, aos 17 anos, no ateliê de seu pai em Roma? Na época, 1612, o caso foi julgado e o artista Agostino Tassi chegou a ser condenado a deixar a cidade, mas a pena não foi levada adiante. "Pintar é um ato arrogante! É desafiar Deus retocando paisagens. É se vangloriar e se você não gosta disso é melhor parar de pintar", diz Galactia, personagem baseada na vida de Artemisia Gentileschi e interpretada pela atriz Clarisse Abujamra na peça Cenas de Uma Execução, que inicia nesta terça-feira, 5, às 21 h, nova temporada no Espaço Cia da Revista, em São Paulo, depois de apresentada no Teatro Sergio Cardoso.
No espetáculo escrito pelo inglês Howard Barker - traduzido por Clarisse Abujamra, que também acumula a função de diretora da encenação -, Galactia é uma pintora consagrada, convidada pelo Doge de Veneza, interpretado por Oswaldo Mendes, a retratar "a mais sangrenta batalha naval da história", a Batalha de Lepanto (1571), símbolo da vitória da Liga Cristã sobre o Império Otomano - para se ter ideia, foram 40 mil mortos em apenas quatro horas, dizem relatos da luta.
"Comecei a ler tudo sobre Artemisia e a batalha e foi um desejo de colocar a mulher no palco com toda a sua glória, no sentido de força, de defesa, através da arte", afirma Clarisse Abujamra sobre sua aproximação com a obra do britânico, escrita, originalmente para o rádio, em 1984, e encenada pela primeira vez nos palcos em 1990. "O Barker é sempre contestador, sempre dá nome aos bois", continua a atriz e diretora. "Brinco que esse texto não tem subtexto; ele fala à exaustão tudo o que pensa, tudo o que quer, acho que quis retratar os dias de hoje sob uma magia outra."
Em Cenas de Uma Execução, Galactia sofre todos os problemas não só por ser mulher - "infeliz", diz a personagem; "promíscua", dizem seus contemporâneos na história -, mas também, como destaca Clarisse, por seu "embate com o poder" - representado pelas figuras de Urgentino, o Doge, e de Ostensibile, o Cardeal, interpretado pelo ator Roberto Ascar.
"Eu pintei a morte porque foi tudo o que vi", afirma Galactia, que, na narrativa, não poupa cores e traços para relatar o massacre de Lepanto. "Sou uma artista que consegue dizer a verdade; pinto o que realmente aconteceu", exprime ainda a pintora em uma passagem da peça sobre sua recusa em romantizar a batalha e amenizar (e legitimar) o horror daquele episódio histórico. "Antes de sentir piedade pelos mortos, identifique-os", é outra fala pungente da personagem, tão forte, mas, ao mesmo tempo, tão feminina, como descreve Clarisse Abujamra.
O espetáculo é, portanto, obra de "teatro de indagação", como opina Oswaldo Mendes. "O Doge é aquele cara do poder que tem uma sensibilidade, é típico da nossa história da arte ocidental ter governantes que tinham preocupações de Estado e incluíam a arte e a relação com os artistas nessas preocupações", comenta o ator. Para Mendes, a peça, que coloca questões como o poder religioso e o papel da crítica, propõe uma reflexão sobre a diferença entre arte e cultura. "Hoje a tela nos agride, mas amanhã, não mais", ele destaca uma de suas falas.
Uma das grandes potências de Cenas de Uma Execução é o fato de o espectador não "ver" o quadro em nenhum momento da peça. Segundo Clarisse, ela não tinha se dado conta da "força do imaginário e da palavra" quando começou a realizar as primeiras leituras do texto de Barker com os atores. Mais ainda, é curioso saber que Artemisia Gentileschi nunca pintou, afinal, a Batalha de Lepanto.
Em um momento de debate sobre a Lei Rouanet, é de se admirar que Clarisse Abujamra tenha tido de recorrer ao financiamento coletivo para realizar um espetáculo tão necessário nesses tempos de indagações como Cenas de Uma Execução.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.