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Ocupação Cartola pretende dar uma nova e maior dimensão ao compositor

Redação Folha Vitória

- Sem nenhum "preste atenção" que o alertasse, Cartola viu os sonhos triturados pelo moinho em que o mundo se transformou a partir da juventude. A mãe se foi e a noite chegou trazendo todos os anjos e os demônios que brincariam de gangorra até o fim de sua vida, em 30 de novembro de 1980, aos 72 anos de idade, consumido por um câncer. Apenas seis anos antes, já sendo Cartola, ele havia lançado seu primeiro disco - a grande redenção da história ao homem que submergiu por anos a sensibilidade minada nas veias para viver como porteiro, contínuo, pedreiro, lavador de carros, vigia de edifício e pintor de paredes.

O samba, percebe-se agora, foi pouco. E com todo o respeito à entidade centenária que tirou Cartola das ruas por mais de uma vez, chamar seu Angenor de Oliveira de sambista soa reducionismo. "Não dá mais para ler Cartola restringindo sua obra ao samba e ele, ao título de sambista. Muito além disso, Cartola era um poeta", diz a cantora Fabiana Cozza, uma das curadoras de um projeto do Itaú Cultural que pode trazer uma dimensão mais justa, guardada pelo tempo.

A Ocupação Cartola, a 31ª de uma série iniciada em 2009, vem sendo preparada há seis meses. Os pesquisadores foram às ruas, entrevistaram personagens importantes, caminharam pelo universo do compositor. A curadoria compartilhada, que tem Fabiana como convidada, envolve os Núcleos do Itaú Cultural de Música e de Enciclopédia e conta com a consultoria de Nilcemar Nogueira, neta e estudiosa de Cartola. "Esse projeto surge em um momento muito oportuno, em que estamos percebendo a importância da dignidade e da fidelidade às crenças", diz Nilcemar. "Estamos passando por uma crise da própria existência, e Cartola mostra que é possível sim acreditar em seus valores."

As partes da ocupação ficarão divididas em '1908 - o nascimento', 'Encontros / Rua', 'Zi Cartola', 'Casa / Varanda', 'Palácio do Samba' e 'Cartola de Ouro'. Grande amor de uma vida de muitos amores, Dona Zica, a Euzébia Silva de Oliveira (1913-2003), sambista da Velha Guarda da Mangueira e parceira mais marcante desde a década de 1950, estará presente sobretudo no espaço que terá uma ambientação do Zicartola, o bar e restaurante criado em setembro de 1963 na Rua da Carioca, no Rio, que teve Dona Zica como uma das sócias e que se tornou uma antologia na história do samba. "Foi lá que Paulinho da Viola recebeu o seu primeiro cachê", conta Edson Natale, diretor do Núcleo de Música do Itaú Cultural. A experiência vai propor a sensação ao visitante de que ele esteja na plateia do próprio Zicartola.

Cartola reflete sinais dos estereótipos que surgem silenciosamente e às avessas. Quando se pronuncia seu nome, assume-se em geral um discurso respeitoso e de engrandecimento, mas limitado às cercanias do samba pela maior facilidade de entendimento ou pelo desconhecimento de sua abrangência. Sem a necessidade desse carimbo, Fabiana Cozza acredita que o homem que colocou o samba no alto escalão da música brasileira possa ser entendido com maior grandeza. "Não se trata de valorizar aqui o Cartola preto, pobre, que nasceu no morro. Isso não é o mais importante, essa é uma camada muito superficial. Depois de passar por essa curadoria, eu posso dizer que eu não conhecia o Cartola".

A neta Nilcemar reage com firmeza a outra observação comum e aparentemente sedutora: afinal, de onde saía a carga poética de alto calibre do compositor? Ela vê preconceito aqui. "Isso vem do estigma, como se Cartola não pudesse criar o que criou por ter saído de onde saiu." Mas, para além dessa leitura, há uma outra também intrigante. Cartola, dono da erudição dos mestres, estudou formalmente apenas o primário. "Mas leu autores parnasianos como Olavo Bilac e Ivan Junqueira", rebate. Seus empregos em versos foram capazes de criar estudos e debates, como a palavra "premeia", de Fiz Pro Você o que Pude. "Alguns linguistas acharam certo, outros discordaram da existência dessa palavra. Era um termo não usual, de uma forma coloquial e culta. Ao final, ficou provado que ele estava certo." Outra concordância que de tão sensível acabou sendo registrada de forma equivocada por alguns está em O Mundo é um Moinho. Cazuza foi um dos que caíram na armadilha gramatical quando gravou a parte "Ouça-me bem, amor / Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos". Mesquinho é o mundo, não os sonhos. Ou seja, singular.

Um dos itens de maior relevância será justamente a distribuição de um livreto com nove poemas inéditos de Cartola, além de fotos de família. Um deles é Anjo Mau, escrito pelas mãos de um Cartola já descrente da recuperação, escutando com autopiedade o prenúncio da morte: "De que cratera saíste / Em que lamaçal brotaste / Por que fizeste tão mal / Nos lugares que passaste? / Por que este olhar satânico / Que força mal te conduz? / Eu noto, ficas em pânico / Quando deparas a cruz! / Por que disfarças um sorriso / Quando vês alguém no leito / Em bom som dizes 'coitado' / Depois sussurras 'bem feito'. / Por que não foges pra's trevas / Igual a um cão acuado? / Embrenha-te no infinito / E deixa-nos sossegados."

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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