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Primo Levi lança 'Assim foi Auschwitz'

Redação Folha Vitória

São Paulo - Poucos autores foram tão cuidadosos na descrição do Holocausto como Primo Levi. A despeito de sua condição de sobrevivente, que certamente poderia levá-lo a colocar sua memória a serviço da vingança pessoal contra seus algozes, com todos os desvios historiográficos que tal atitude poderia causar, Levi respeitou o quanto pôde a realidade dos fatos - e isso transparece de forma concreta no livro Assim foi Auschwitz.

A começar pelo título, que anuncia o relato do que efetivamente "foi" o campo de extermínio que simbolizou o esforço criminoso dos nazistas, o texto publicado agora no Brasil pretende ser o testemunho mais próximo do real que as circunstâncias permitem. O capítulo principal é o quase desconhecido "Relatório sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de Monowitz", que fazia parte do complexo de Auschwitz. Produzido a pedido do Comando Russo que tomou aquele campo, em 1945, o relatório de Levi descreve minuciosamente a estrutura construída pelos alemães para aniquilar os judeus europeus. Relata o processo quase científico por meio do qual os prisioneiros eram transformados em bestas.

A frieza do texto contrasta com a reação de imensa angústia que causa: lê-se em detalhes como o destino de mulheres e crianças, idosos e inválidos, todos inocentes e inofensivos por definição, estava traçado desde sua chegada ao campo - a morte pelo gás. Lê-se também que os prisioneiros aptos ao trabalho eram submetidos a suplícios e a condições sanitárias tais que sua capacidade produtiva era reduzida a zero, concluindo-se dessa forma que o objetivo dos nazistas não era obter qualquer fruto dessa mão de obra, mas matar por meio do esforço físico deliberadamente inútil. A ironia dessa estratégia estava inscrita logo na entrada de Auschwitz: Arbeit macht frei (o trabalho liberta).

De sua acurada narrativa, construída somente com informações que podiam ser comprovadas ou que derivavam de testemunhos confiáveis, surge um cenário desolador da própria espécie humana. Levi dedicou sua vida, como sobrevivente, a devolver os nomes às pessoas que haviam sido reduzidas, como ele, a um número tatuado no braço. Ele queria também mostrar que o massacre dos judeus na 2ª Guerra não foi somente um crime extraordinário, mas uma revelação.

Levi já havia advertido que a memória é "falaz", no sentido de que pode enganar aquele que relata. É justamente nos pequenos lapsos da lembrança dos que estiveram no inferno nazista que os inimigos da memória se baseiam para desacreditar todas as testemunhas que ousam denunciar do que a humanidade já foi capaz. O escritor italiano não quis correr esse risco, razão pela qual só falou aquilo que constatou e tratou de corrigir os eventuais erros que cometeu, como fica claro no livro.

Esse cuidado é necessário porque, desde que o mundo ficou conhecendo os terríveis detalhes do massacre dos judeus nos campos nazistas, a reação foi, em geral, de negação da realidade. Aquilo simplesmente não era possível e, portanto, nem poderia ser discutido.

Coube a sobreviventes dedicados como Levi a tarefa de trazer à luz os detalhes que ninguém queria conhecer. O italiano, em particular, demonstrou especial sensibilidade para perceber o colapso moral promovido pelo nazismo, mesmo entre as vítimas. Reduzidos a animais, os prisioneiros passaram a agir exclusivamente em função da satisfação de suas necessidades físicas, tratando a todos os demais como inimigos em potencial, situação em que os laços de solidariedade se esgarçam até o ponto da completa impossibilidade. Num ambiente em que, como relata Levi, "apenas excepcionalmente era possível sobreviver", os verdadeiros criminosos eram alçados à categoria de autoridades. O autor lembra um provérbio dos campos de concentração: "Um prisioneiro honesto não vive mais do que três meses".

O próprio Levi reconhece que sua consciência, como a dos demais presos, ficou adormecida, o que era quase uma estratégia para suportar a "ferocidade deliberada e inconcebível" dos carrascos. Nos raros e breves momentos em que eles não estavam lutando pela sobrevivência, sua consciência despertava, e o consequente reconhecimento de sua real situação causava uma dor especialmente insuportável.

Depois da guerra, muitos sobreviventes temeram contar sua experiência, porque, segundo Levi, não queriam passar por mentirosos. Para o escritor italiano, porém, o mundo civilizado preferia mesmo o silêncio, envergonhado que estava diante do fato de que os carrascos nazistas faziam parte da mesma família humana das vítimas. Espanta, enfatiza ele, "a demonstração despudorada da facilidade com que o mal prevalece". Assim, o nazismo fracassou, mas não o espírito que o moveu. Como lembra Levi, "somos filhos dessa Europa onde está Auschwitz".

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