
Aos 13 anos, Miguel Passos Ferreira decidiu vestir o dobok (uniforme usado em artes marciais coreanas) e entrar no tatame pela primeira vez. Não foi por indicação médica, nem por imposição dos pais. Foi curiosidade, vontade antiga e uma oportunidade que apareceu no momento certo. Em pouco tempo, ele já subia ao pódio como campeão estadual de taekwondo.
“Eu estava há um bom tempo sem fazer esporte normalmente, aí a minha mãe falou que tinha aberto vaga no projeto e perguntou se eu queria fazer. Eu sempre gostei de luta, desde pequenininho, achei legal e fui”, relata Miguel.
A resposta veio rápido. Em poucos meses de treino, em um projeto social com aulas gratuitas, o garoto conquistou o título estadual da sua categoria. Quando fala da vitória, o tom é simples, quase tímido: “Eu me sinto feliz”.
Impacto além da medalha
Além do condicionamento físico, Miguel percebeu mudanças que não aparecem em rankings ou troféus. “O taekwondo me ajudou muito no meu foco, porque no treino tem que prestar muita atenção nas falas, nas palavras, nos movimentos”, diz.
Segundo ele, essa atenção exigida no taekwondo passou a refletir também na escola e na convivência com os colegas.
Eu sempre respeitei meus professores, mas comecei a ensinar meus amigos também. Falo que, aqui no taekwondo, você precisa respeitar muito o mestre, porque ele é o mais responsável dentro do tatame.
Miguel Passos Ferreira, 13 anos
O esporte, aos poucos, passou a ser visto não só como atividade física, mas como projeto de vida. “Eu quero seguir essa carreira, sim”, afirma o atleta.
Quem observa essa transformação de perto é o pai, Flamarion Ferreira: “Miguel sempre gostou de esporte, já fez futebol, andou de skate. Mas quando ele começou aqui, foi diferente”.

Segundo o pai, o filho participou de dois campeonatos em sequência. No primeiro, ficou em segundo lugar. No seguinte, foi campeão estadual. “Isso foi muito importante para a vida dele, não só no esporte, mas na disciplina, nos estudos, no dia a dia”, afirma.
Flamarion confirma o que Miguel descreveu sobre outros “ganhos” que o esporte traz. “Ele melhorou muito o foco. O professor fala uma vez e eles já sabem o que fazer. Eu não entendo nada (risos), mas ele entende tudo. E isso despertou nele”, comenta.
Para o pai, o futuro no esporte é uma possibilidade real. “Pode virar profissão, sim. Tudo depende dele. Mas se depender de mim e da mãe dele, a gente vai estar sempre apoiando”, diz.
Esporte também é acolhimento

Se para Miguel o taekwondo trouxe foco e direção, para Rebeka Batista, de 11 anos, trouxe algo ainda mais fundamental: segurança emocional.
Autista, Rebeka chegou ao Projeto Vem Ser Taekwondo no fim de janeiro deste ano. A adaptação não foi simples, como lembra a mãe, Lilian Otto Batista.
Quando ela chegou aqui, chorava muito. Tinha movimentos que ela não conseguia fazer igual aos outros, isso frustrava muito. A interação também era difícil para ela
Lilian Otto Batista, mãe de Rebeka
O choro vinha acompanhado de frustração e sensação de não pertencimento. “Ela ficava muito chateada, muito decepcionada porque não conseguia acompanhar”, destaca Lilian.
Confiança construída movimento a movimento
Com o tempo, as coisas começaram a mudar para Rebeka. “Ela foi pegando confiança e isso é uma coisa que eu achei muito legal no taekwondo, porque dá segurança”, diz a mãe.
“Hoje, quando eu olho, ela acompanha todo mundo certinho, faz os movimentos, tem segurança”, acrescenta.

Aos poucos, Rebeka passou a se integrar às dinâmicas coletivas, aos exercícios em grupo e ao convívio com outras crianças: “Eles acolhem, eles abraçam. Isso faz muita diferença”. As mudanças ultrapassaram o espaço do treino.
Ela tem muito mais segurança não só aqui, mas em outros lugares. Na escola, por exemplo, ela já tenta, já faz. Antes, tinha medo de testar
Lilian Otto Batista, mãe de Rebeka
Para Lilian, o impacto vai além da técnica esportiva, já que o taekwondo também trouxe uma evolução física para a filha.
“Ela não tinha muito equilíbrio, caía com facilidade. Hoje o tônus está melhor, ela tem mais desenvoltura. É o esporte levando dignidade. Eles se desafiam, veem o potencial que têm. Isso dá confiança”, afirma.
Projeto oferece aulas gratuitas
As histórias de Miguel e Rebeka se cruzam em um mesmo espaço: o Projeto Vem Ser Taekwondo. A iniciativa oferece aulas gratuitas para crianças e adolescentes, e tem no esporte a porta de entrada para algo maior.

“O projeto foi pensado em 2022, pela Federação de Taekwondo, mas a gente não tinha recursos para tirar as ideias do papel”, explica o mestre Iorrany Assis.
No início, eram poucas crianças e estrutura limitada. A virada aconteceu em 2023. “Em julho de 2023, conseguimos um aporte por meio da Lei de Incentivo ao Esporte. Isso permitiu implantar os dois primeiros núcleos, aqui em Vitória e em Serra Dourada 2”, diz Iorrany.
Lei permitiu crescimento
Com os recursos, foi possível comprar tatames, equipamentos de proteção e uniformes. “Não tem nenhum outro recurso além da Lei de Incentivo”, ressalta o mestre.
O projeto começou atendendo 60 crianças. Hoje, são 140 em três núcleos: Bento Ferreira, Jardim Camburi e Serra Dourada 2. Ao todo, quase 200 crianças já passaram pelo projeto desde a criação.
Com o crescimento, o foco inicial também se transformou. “No começo, a ideia era só um núcleo esportivo, mas começamos a perceber crianças com dificuldades escolares, afetivas, de relacionamento. Temos autistas, crianças com síndrome de Down, transtornos diversos…”, revela.
O mestre reforça que o esporte passou a ser meio, não fim. “Hoje, o taekwondo é a porta de entrada para conversar com as crianças e com as famílias.”
Lei cria ponte entre empresas, governo e projetos
Projetos como o Vem Ser Taekwondo só se tornaram viáveis por meio da Lei de Incentivo ao Esporte Capixaba (Liec), sancionada em 2021, que permite que empresas destinem parte do ICMS para apoiar projetos esportivos.

Segundo o secretário estadual de Esportes (Sesport-ES), José Carlos Nunes, o impacto é amplo.
Nos últimos três anos, foram quase R$ 60 milhões em isenção fiscal, atendendo 112 projetos sociais e 66 eventos. O projeto de taekwondo é um deles. São 140 crianças atendidas no Vem Ser Taekwondo. Tudo por conta da lei, 100%.
José Carlos Nunes, secretário de Estado de Esportes
Para José Carlos Nunes, a Lei de Incentivo cria uma ponte entre empresas, governo e projetos sociais. “É uma parceria que permite que o esporte chegue onde muitas vezes não chegaria”, considera.
Em 2025, o investimento total chegou a R$ 25 milhões, atendendo 81 projetos e cerca de 140 mil pessoas em todo o Espíríto Santo. Segundo o governo estadual, a previsão é manter o mesmo valor no próximo ano. Acesse aqui para conhecer mais sobre a Lei de Incentivo ao Esporte.
Como participar do projeto
Crianças e adolescentes de 7 a 17 anos podem participar do Projeto Vem Ser Taekwondo, que entra em recesso neste final de ano, mas retorna no dia 27 de janeiro.
As inscrições são feitas por meio de um cadastro de reserva, disponível no link na bio do Instagram @vemsertaekwondo. Basta escolher o núcleo desejado.
Além dos núcleos já existentes, o projeto prevê a abertura de unidades em Vila Velha e Cariacica em 2026.
Para muitas famílias, o primeiro passo pode começar com um simples cadastro e se transformar, com o tempo, em foco, disciplina, autoestima e novos caminhos.