
Kelly dos Santos, 42 anos, não conhecia quadras, treinos ou competições. Até os 25 anos, a vida dela era dentro de casa, cuidando dos filhos, da casa e da rotina doméstica. O glaucoma, descoberto aos 19, já estava avançado. “Consegui salvar só a percepção de vulto e de luz”, conta.
Foi assim que ela aprendeu a reorganizar o cotidiano, mas não a sonhar. Isso só veio depois que o esporte entrou na vida dela.
O primeiro passo foi no tatame, com o judô. O segundo, arrebatador, aconteceu quando ouviu falar em goalball. Desde então, Kelly diz que não se imagina mais longe da modalidade.
Nossa, minha vida mudou totalmente, da água pro vinho. O goalball fez uma diferença tão grande na minha vida que hoje eu não consigo mais me ver sem o goalball. Eu sou apaixonada. Eu sou mais feliz hoje com o goalball do que eu era antes.
Kelly dos Santos
Ela explica que a perda da visão foi rápida e profunda. “Eu não vejo cores, não distingo mais nada assim, só vulto mesmo”, diz.
A rotina, antes limitada ao espaço doméstico, ganhou outra dimensão com a chegada do goalball. Vieram as competições, o reconhecimento, a autoestima elevada. “A autoestima da gente sobe, nossa, 30 andares”, brinca.
Kelly hoje integra uma equipe profissional. “Eu já competi. Em julho, teve as regionais Sudeste I e eu participei da competição da equipe do IMM. Ano que vem tem de novo, para Uberlândia”, diz.
E completa, rindo, quando questionada se faz gols: “Olha, eu faço a minha parte, né? Graças a Deus. Defendo também, na média. Deixo passar, defendo, faço gol”.
Veja um pouco do treino:
Reencontro com o esporte
Se para Kelly o goalball virou paixão arrebatadora, para Celésio José de Souza a palavra é reencontro. Ele, que já conhecia o paradesporto, teve no esporte uma surpresa e uma transformação. Celésio começou no paradesporto muito antes, nos anos 2000.
“Eu comecei lá em 2006, 2007. Fiz atletismo e goalball. Competi no goalball uma vez só, e no atletismo também competi. Fui medalha de prata, em São Paulo”, lembra. Depois disso, ficou um longo período afastado. “Eu parei em 2010, por ali, 2011”, afirma.

O retorno aconteceu agora, em 2025. “Como eu já conhecia, falei: vou experimentar novamente e ver se eu vou gostar dessa vez… E eu gostei mais”, diz.
O entusiasmo é evidente: “Estou empenhado”. E quando perguntam se pensa em desistir, ele responde sem hesitar: “Não!”. Isso tudo porque, para Celésio, o impacto vai muito além do físico.
Tem o aspecto pessoal, da qualidade de vida… Mas tem também o aspecto social. O movimento dos colegas. Conversar sobre o esporte, aprender sobre o esporte.
Celésio José de Souza
Ele conta que treinar ao lado de atletas mais experientes abriu novas perspectivas. “Tem contato com pessoas no nível de competição. Não era o meu propósito competir, não, mas hoje em dia confesso que eu estou meio em dúvida, já estou meio balançado”, comenta.
E resume, em poucas palavras, o que o goalball representa: “Vir para cá muda a minha vida para melhor, com certeza”, revela.
Goalball exige silêncio: como funciona
O goalball é uma modalidade paralímpica exclusiva para pessoas com deficiência visual. A dinâmica é intensa: três atletas de cada lado, vendados, arremessando uma bola pesada de 1,25 kg, com guizos internos, que orientam a defesa pelo som.
A quadra é toda marcada em alto relevo, para orientação tátil. E o silêncio, absoluto, não é falta de emoção, é condição de jogo.
“É um esporte praticado por deficientes visuais. É o único esporte não adaptado do Olímpico, ele foi criado especificamente para eles”, explica Rodrigo Oliveira, árbitro de goalball.
Veja vídeo com as regras e a prática do paradesporto:
Rodrigo relembra a origem da modalidade: “Foi criado por um austríaco e um alemão, em 1950, para reabilitar soldados que voltavam da Segunda Guerra com problemas de visão”.
O árbitro acompanha de perto o desenvolvimento dos atletas, e observa mudanças profundas. “O esporte em si, em geral, muda a vida de praticamente todo mundo. E pra eles aqui, é sensacional”, afirma.

Ele conta que a ausência de treino é motivo de frustração. “Quando não tem treino, eles reclamam. Às vezes, a quadra está ocupada, tem evento, e não pode ter treino. Eles ficam até meio tristes. Mas quando estão aqui, eles se divertem. Para eles, é uma alegria imensa”, fala.
Vídeo mostra orientação aos atletas:
Além da alegria, há ganhos concretos. “Eles desenvolvem audição, tato, percepção de distância, percepção do movimento do outro. Eles ficam mais atentos ao som do guizo, a posição do colega, ao passo do adversário”, diz.
Os treinos, atualmente, acontecem no Centro de Treinamento Jayme Navarro de Carvalho, em Bento Ferreira, Vitória, às segundas e quartas, das 13h às 15h.

Porta de entrada para a autonomia
Para a educadora física Laís Lima, que há anos acompanha o impacto do esporte na vida de pessoas com deficiência, a principal barreira ainda é o acesso.
“A primeira dificuldade é a questão de ter acesso à informação… Da criança com deficiência ter acesso dentro da escola, dela ser incluída na aula de educação física. Normalmente, as outras crianças brincam e ela não tem adaptação”, afirma.
Para adultos que adquiriram deficiência ao longo da vida, as barreiras são outras.
A pessoa pensa: ‘Fiquei deficiente, e agora?’. Ainda é muito escasso. Ainda tem muita gente em casa achando que não tem o que fazer.
Laís Lima, educadora física
Mas quando chegam ao esporte, seja para lazer ou para treinar, a transformação é visível. “A mudança é gigante. Dá pra ver no semblante”, diz Laís.

Ela destaca não só condicionamento físico, mas na autonomia: “Independência de se transferir sozinho, tomar banho sozinho, pegar um ônibus sozinho. Isso muda tudo.”
Laís lembra que muitas famílias superprotegem, com medo. “Mas eles precisam ter independência. Pequenas coisas fazem muita diferença. O esporte salva muitas vidas. Independente de ser alto rendimento ou lazer”, resume.
A estrutura que permite que histórias como essas aconteçam
A procura pelo goalball, no Espírito Santo, se conecta a um dado relevante: o Estado tem 276.305 pessoas com deficiência, segundo levantamento de 2024. Mais da metade tem deficiência visual (50,8%). São pessoas que poderiam se beneficiar diretamente de iniciativas esportivas inclusivas.
O cenário também é impulsionado por resultados expressivos. Apenas nos Jogos Paralímpicos de Paris 2024, seis atletas capixabas e um atleta-guia representaram o Estado. Nas Paralimpíadas Escolares de 2025, foram 83 estudantes-atletas, com 102 medalhas conquistadas.

Parte desse avanço tem ligação direta com o espaço em que Kelly, Celésio e tantos outros treinam: o Centro de Treinamento Jayme Navarro de Carvalho.
No CT, o uso dos espaços segue um modelo de agendamento institucional. A reserva não é feita por atletas individualmente, mas por entidades responsáveis. No caso das modalidades tradicionais, quem solicita é a federação de cada esporte.
Centro para Pessoas com Deficiência é referência no Brasil
Já no paradesporto, onde a estrutura organizacional funciona de forma diferente, quem faz a reserva são as associações e grupos que atuam com pessoas com deficiência em cada modalidade. São essas entidades que organizam os treinos, realizam o agendamento e garantem o uso adequado do espaço.

O local se tornou referência por oferecer estrutura para treinos de diversas modalidades e, especialmente, por ter recebido, em 2025, uma das obras mais aguardadas pelo paradesporto: o Centro de Excelência de Esportes para Pessoas com Deficiência “Sidney de Carvalho Rosadas”, a segunda maior estrutura do Brasil, dedicada exclusivamente ao paradesporto.
O papel da política pública
O gerente de Esportes de Formação e Rendimento, da Secretaria de Estado de Esportes e Lazer (Sesport), Leni Júnior, explica que o CT foi concebido para atender atletas de alto rendimento, mas ganhou força também como espaço de formação e acolhimento.
“Todas as equipes são formadas por atletas criados nas federações. As federações nos provocam com essa utilização dos equipamentos”, diz.
Com o goalball, a mudança foi rápida. Leni destaca que só agora os atletas têm acesso à estrutura ideal.

“É um esporte novo que chegou aqui no CT. Hoje, além do ginásio desenhado para eles, a gente também tem uma academia de força. Eles podem fazer todo o treinamento num só lugar”, afirma. Para ele, isso tende a repercutir nos próximos ciclos paralímpicos.
A gente acredita que, daqui a uns quatro anos, teremos muito resultado nas Paralimpíadas com esses atletas que treinam aqui dentro.
Leni Júnior, da Gerência de Esportes de Formação e Rendimento
Ele também avalia que o Estado deixou de perder talentos para outros centros do País. “A nossa intenção era deixar de exportar os nossos atletas. Hoje, atletas de nível nacional e internacional estão vindo treinar aqui, por causa dos nossos equipamentos”, comenta.
Esporte que muda histórias
Para Kelly, o goalball virou reinvenção pessoal. Para Celésio, reconexão social. Para Rodrigo e Laís, ferramenta que amplia autonomia e dignidade.
E para o Espírito Santo, o paradesporto é um espelho de como esporte, estrutura e acesso podem transformar vidas, especialmente quando o silêncio necessário para o jogo abre espaço para vozes, que antes não tinham onde ecoar.