
Nathália Torezani chega ao Complexo Poliesportivo Álvares Cabral, em Bento Ferreira, Vitória, com naturalidade de quem encontrou ali um segundo lar. Aos 47 anos, a jornalista reconhece que jamais imaginou que um esporte seria capaz de reconstruir não apenas a rotina, mas a própria identidade depois de tudo o que viveu.
A trajetória dela mudou completamente, em abril de 2001, quando caiu de uma tirolesa após desmaiar, em Santa Teresa. O desmaio repentino, que depois seria relacionado a uma possível alteração da glicose, resultou em uma queda grave, pneumotórax, perda de sensibilidade nas pernas e a necessidade de reaprender a viver sob outras condições.
Eu era uma jovem de 22 anos, prestes a me formar, iniciando a vida adulta, e perdi totalmente a minha independência física. Eu preciso de ajuda para entrar na piscina, para me vestir, para fazer as minhas coisas. Eu não romantizo isso jamais.
Nathália Torezani, atleta paralímpica
Se a lesão já tinha sido um trauma radical, o ano de 2017 acrescentaria outra marca: a morte da mãe, que havia assumido seu cuidado por quase duas décadas. O luto, a reestruturação familiar e a sensação de vazio tornaram aquele período ainda mais difícil.

Foi a irmã de Nathália quem sugeriu buscar algo que a tirasse daquele ciclo. Pesquisou, conversou com o treinador Leonardo Miglinas e a convenceu a, ao menos, experimentar a natação.
“Eu vim para cá simplesmente para nadar. Para lidar com uma situação impossível e conhecer gente nova”, diz a atleta.
O que era para ser um respiro se tornou destino. Em menos de um mês, o técnico a chamou de lado e disse que via ali potencial de atleta.
Meses depois, em 2017, Nathália disputou sua primeira competição, no Rio de Janeiro, e voltou com duas medalhas. Pouco depois, conquistou índice para o nacional e, no mesmo ano, foi campeã brasileira de revezamento.
Da piscina, emergia não apenas uma atleta em ascensão, mas alguém que redescobria valor, capacidade e autoestima.
Eu não sou capaz de mensurar os benefícios que o esporte traz na minha vida até hoje. É uma transformação absurda.
Nathália Torezani, atleta paralímpica

A evolução continuou. Nos últimos dois anos, ela tem registrado seus melhores resultados. Na competição mais recente, realizada no último final de semana, conquistou bronze nos 50m livre S6 e nos 100m livre S6, ficando atrás somente de atletas da seleção brasileira, medalhistas paralímpicas.
Mesmo assim, Nathália segue confiante. “Para mim, hoje, não tem limite. Eu vou até quando der.”
Quando a água vira reencontro
Se a história de Nathália é marcada por reinvenções, a de Waldir Alvarenga Junior, o Tiozinho, é atravessada por um reencontro profundo consigo mesmo.

“Eu tinha 24 anos quando sofri um acidente automobilístico, em 1999, a caminho de Cachoeiro de Itapemirim, onde visitaria minhas filhas. Estava de cinto, tranquilo, mas o carro perdeu a direção e capotou. A lesão medular de C4 a C7 resultou em tetraplegia”, relata.
Vieram os anos de adaptação, reabilitação e, principalmente, depressão. O esporte ainda não fazia parte do horizonte. Só sete anos depois, por convite de um funcionário do Álvares Cabral, ele conheceu o projeto de natação paralímpica.
A primeira visita foi determinante. “Quando eu entrei e vi pessoas com as mesmas lesões que a minha nadando, eu fiquei emocionado. Me senti em casa”, conta. Era o início de algo que ele define como renascimento.
A sensação era de liberdade. Me senti como se tivesse voltado a andar novamente. Na água, somos soltos, livres. Não tem obstáculos.
Waldir Alvarenga Junior, o Tiozinho, atleta paralímpico
Os resultados vieram rápido. “Eu treinei 26 dias, fui para Brasília e ganhei quatro medalhas de prata. Eu falei: é isso que eu quero para a minha vida”, afirma.
Na trajetória, vieram recordes brasileiros, títulos consecutivos e um reconhecimento que supera as marcas esportivas. “O projeto me salvou. Me tirou da depressão. Minha família viu um filho de volta.”
Hoje, aos 16 anos como atleta da equipe, Tiozinho é referência nacional. E mesmo em uma temporada difícil, com um mês e meio sem treinar, conquistou bronze nos 200m livre S3 na competição mais recente, no último final de semana.
“Benefícios incomparáveis”: o olhar do treinador
O técnico dos dois esportistas, Leonardo Miglinas, acompanha de perto cada etapa da evolução de Nathália e Tiozinho e de tantos outros atletas. Para ele, mais do que desempenho, o esporte é instrumento de autoestima e pertencimento.
“Para pessoas com deficiência física, como é o caso dos dois, o preconceito parte da ideia de que o corpo deles não é capaz. E o esporte promove exatamente o contrário”, fala. Na natação, esse efeito é ainda mais simbólico.

Eles deixam a cadeira do lado de fora. É o corpo deles e o movimento. Eles são vistos com admiração pelo que o corpo é capaz. Apesar das sobrecargas físicas naturais do alto rendimento, os benefícios emocionais e sociais são incomparáveis. Isso é muito poderoso.
Leonardo Miglinas, técnico dos esportistas
O treinador destaca ainda que, por trás dos resultados e da evolução técnica, existe uma estrutura que precisa ser sustentada todos os dias.
Segundo ele, o alto rendimento paralímpico envolve custos contínuos com transporte, materiais, profissionais especializados e participação em competições dentro e fora do Estado.
É justamente nesse ponto que políticas públicas de incentivo se tornam determinantes para que atletas consigam permanecer no circuito.

Leonardo revela que, entre esses mecanismos, existe o Bolsa Atleta Capixaba, que ocupa papel central ao oferecer um suporte mensal e garante o mínimo de estabilidade à rotina esportiva. Para ele, é esse respaldo que permite transformar potencial em continuidade.
A profissionalização muda tudo. O Bolsa Atleta dá tranquilidade. Permite comprar material adequado, ter alimentação melhor, participar de competições. Sem isso, seria muito mais difícil.
Leonardo Miglinas, técnico dos esportistas
Apoio financeiro essencial
Embora as narrativas de Nathália e Tiozinho se sustentem por si mesmas, há um elemento comum que se torna decisivo para transformar talento em continuidade: o apoio financeiro, que garante condições mínimas para competir em alto nível.
Ambos ressaltam que o esporte paralímpico é caro e envolve a compra de material, viagens, hospedagens, equipamentos específicos, academia, suporte profissional, dentre outros custos.
Antes do Bolsa Atleta, Tiozinho chegou a fazer rifas e bater de porta em porta. “O Bolsa paga minhas contas. Hoje, eu não preciso mais fazer rifas. Sou bolsista desde 2011”, diz.
Nathália reforça: “Sem esse suporte financeiro, eu não poderia contar com profissionais que são fundamentais para o meu desempenho”.
Bolsa Atleta: entenda o programa
Criado em 2009, o Bolsa Atleta Capixaba é o mecanismo pelo qual o governo estadual oferece auxílio mensal para que atletas e paratletas de alto rendimento consigam manter treinos, competições e estrutura mínima de preparação.
O programa prevê categorias, que variam entre R$ 500 e R$ 4.000 mensais, com exigência de resultados em competições nacionais e internacionais. No edital mais recente, foram oferecidas 249 bolsas, número recorde.
Os atletas precisam comprovar residência no Estado e desempenho esportivo qualificado. O benefício cobre despesas como alimentação, assistência médica, transporte, materiais esportivos e pagamento de técnicos, permitindo que eles se mantenham ativos no circuito nacional.
Além disso, o programa Voe Atleta complementa o ecossistema ao custear passagens aéreas para competições, etapa necessária para que atletas conquistem os resultados que possibilitam acesso ao Bolsa Atleta.
Para obter mais informações sobre o Programa Bolsa Atleta, basta acessar o site sesport.es.gov.br. O contato também pode ser por telefone: (27) 3636-7001.
Impulsionando o esporte

O secretário de Estado de Esportes, José Carlos Nunes, destaca que a política pública existe para dar condições de desenvolvimento aos atletas que representam o Espírito Santo.
É um recurso que o governo repassa para que eles possam treinar e se manter como atletas.
José Carlos Nunes, secretário de Estado de Esportes
Ele complementa que o Bolsa Atleta Capixaba é parte de um conjunto mais amplo, que inclui investimentos em equipamentos esportivos e no Voe Atleta.
“Dependendo da classificação em uma competição, o atleta tem muito mais chances de acessar o Bolsa Atleta no ano seguinte”, finaliza.
Quando o esporte devolve o futuro
As histórias dos campeões Nathália e Tiozinho revelam o quanto o desempenho paralímpico depende da convergência entre talento individual, condições de treinamento e suporte permanente.
A continuidade dos dois no alto rendimento, mesmo após traumas, luto, depressão e afastamentos, evidencia como o acesso a estrutura e financiamento definem quem consegue permanecer competindo entre os melhores do País.
No fim, mais do que medalhas, suas trajetórias mostram o que acontece quando vidas interrompidas encontram espaço real para recomeçar.