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Review | Hell Is Us – Guerra, monstros e enigmas

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Review | Hell Is Us – Guerra, monstros e enigmas

Hell Is Us chega como um dos projetos mais ousados da Rogue Factor. Publicado pela Nacon, o jogo aposta em uma fórmula pouco convencional para o gênero de ação e aventura.

Sem mapas, sem marcadores de missão e sem guias visuais típicos, ele exige paciência, memória e até mesmo um caderno para anotações. É uma experiência que desafia a forma como interagimos com mundos digitais e, ao mesmo tempo, expõe limites claros em combate e interface.

Um cenário de guerra e calamidade

A trama se passa no país fictício de Hadea, devastado por décadas de autoritarismo, isolamento e uma guerra civil brutal. A violência atinge a todos: crianças, religiosos, civis comuns.

Nesse cenário humano já trágico, surge uma calamidade ainda mais sombria: criaturas chamadas Entidades Límbicas, manifestações de dor e luto que assumem formas geométricas perturbadoras. A narrativa não poupa o jogador — em vez de suavizar a brutalidade, expõe as consequências da guerra de forma direta e incômoda.

Você controla Remi, que retorna a Hadea após anos exilado. A busca pessoal por respostas logo se mistura ao caos do país, onde inimigos humanos e sobrenaturais convivem em uma atmosfera de constante tensão. Remi é um protagonista silencioso, contrastando com heróis falastrões de outros jogos, o que reforça o peso da ambientação.

Uma filosofia de exploração radical

O maior diferencial de Hell Is Us está no modo como lida com a exploração. Não há mapa, log de missões ou marcadores de objetivo. O que você tem é uma bússola rudimentar, pistas fragmentadas e a própria observação. O design busca transmitir a hostilidade de um país em guerra, onde cada passo exige cautela.

Esse sistema oferece momentos genuínos de satisfação. Resolver um enigma após cruzar vilarejos distantes, conectando pistas aparentemente desconexas, faz você se sentir inteligente.

Há exemplos brilhantes: encontrar um cofre abandonado e, horas depois, descobrir que a combinação estava ligada ao documento de uma família refugiada. Situações assim destacam a força do jogo quando confia plenamente na inteligência do jogador.

No entanto, a liberdade vem com limitações. Hadea é fragmentada em áreas pequenas e lineares, o que reduz a sensação de mundo vasto. Ao contrário de Elden Ring, onde saltar e escalar tornam a exploração orgânica, aqui barreiras artificiais como cercas baixas ou rios rasos interrompem o fluxo. A ambição narrativa contrasta com uma execução prática mais contida.

Combate inspirado, mas repetitivo

O combate de Hell Is Us mistura elementos de Dark Souls e Nioh. Gerenciamento de stamina, esquivas no último segundo e parries oportunos formam a base. As Entidades Límbicas só podem ser derrotadas com armas igualmente enigmáticas, chamadas Armas Límbicas, que oferecem poderes elementais através de Esferas Límbicas.

Na teoria, o sistema promete profundidade. Na prática, sofre de repetição. Há apenas cinco tipos de inimigos básicos, revelados cedo demais, além de versões “Ligadas” que criam uma névoa protetora e alongam batalhas sem acrescentar variedade. O jogo apresenta também execuções brutais, mas o tom violento destoa da mensagem de empatia e reconstrução da narrativa.

As escolhas de customização também são limitadas. Esferas atribuídas às armas não podem ser trocadas, mas o jogo entrega versões alternativas de praticamente todas as combinações possíveis, esvaziando a relevância das decisões. O resultado é um combate funcional e responsivo, mas previsível após poucas horas.

Quebra-cabeças e investigação

A investigação ocupa papel central. Muitos enigmas são elaborados, exigindo atenção a documentos, símbolos e histórias locais. Resolver um puzzle pode significar percorrer toda a região para cruzar informações, o que dá imersão única. Em contrapartida, alguns desafios soam arbitrários, baseados em símbolos obscuros ou pistas vagas demais, testando mais a paciência do que a lógica.

A interface é outro ponto problemático. Documentos importantes se acumulam em um inventário confuso, sem filtros eficientes. O jogador precisa abrir, procurar e até fotografar manualmente pistas para resolver enigmas fora do jogo. É uma decisão que gera frustração, principalmente para quem não tem memória fotográfica. A sensação é de que o design às vezes pune o jogador em vez de recompensá-lo.

Uma mensagem política pesada

Hell Is Us é tão sobre política quanto sobre monstros. O país fictício é um espelho de conflitos reais: genocídio, manipulação religiosa, propaganda de Estado. O roteiro nem sempre aprofunda as questões com equilíbrio, mas a ambientação e as áreas exploradas — vilas destruídas, campos de refugiados, cemitérios improvisados — comunicam mais do que muitas cutscenes. A crítica ao autoritarismo e às consequências da guerra é clara e contundente.

Ao mesmo tempo, o jogo celebra gestos simples de bondade. Missões paralelas chamadas Boas Ações envolvem resgatar animais, ajudar famílias ou resolver pequenos dilemas. São momentos que lembram o jogador de que a humanidade sobrevive em atos cotidianos, mesmo em meio à destruição.

Estilo artístico e direção visual

Visualmente, o jogo impressiona. Cenários como o Lago Cynon, de beleza quase surreal, contrastam com o Museu Auriga, que remete ao sobrenatural. Cada área tem identidade própria, reforçando a sensação de um país marcado por história e tragédia. A paleta de cores, a arquitetura e os monumentos contam histórias silenciosas. É uma direção de arte comparável a Pathologic, misturando o estranho e o familiar.

Infelizmente, a interface e a câmera não acompanham essa sofisticação. O HUD é genérico e a movimentação restrita limita a grandiosidade do design artístico. Mesmo assim, explorar Hadea é um deleite visual, ainda que funcionalmente simplificado.

Paciência recompensada, mas não para todos

Hell Is Us é um jogo de extremos. Quando aposta na exploração sem guias, nos enigmas abertos e na narrativa política, brilha como poucos. Mas quando força repetição em combate, limita áreas com barreiras artificiais ou se perde em interfaces mal pensadas, gera frustração. É uma experiência que exige disciplina, curiosidade e, acima de tudo, paciência.

Para quem busca ação contínua, o jogo pode soar monótono. Para quem gosta de mergulhar em mundos densos, anotar pistas e aceitar fricção como parte da imersão, é uma joia rara. A mensagem central permanece: diante do horror, pequenos atos de empatia ainda importam.

VEREDITO

Hell Is Us não é para todos, mas é para quem aprecia experiências que desafiam convenções. É um título que abraça imperfeições, mas entrega autenticidade. Entre monstros límbicos, enigmas complexos e um país em guerra, o que mais fica é a reflexão: salvar o mundo pode começar com salvar uma única vida.

Nota: 8/10

Rômulo Justen
Rômulo Justen

Editor de Games

Jornalista que compila código e combos: troca bugs por chefões desde o Atari 2600. Agora farma XP em action‑RPGs com o filho Noah, sem perder o buff do café.

Jornalista que compila código e combos: troca bugs por chefões desde o Atari 2600. Agora farma XP em action‑RPGs com o filho Noah, sem perder o buff do café.