Comecei The Alters esperando um jogo de gerenciamento com toques de sobrevivência e ficção científica. Algo na linha de Frostpunk ou This War of Mine, com decisões difíceis e ambientação sombria.
O que encontrei foi isso — e muito mais. O novo projeto da 11 Bit Studios me pegou desprevenido pela profundidade emocional, pela complexidade moral e, principalmente, por sua forma única de explorar uma pergunta simples: e se você tivesse feito escolhas diferentes na vida?
No papel de Jan Dolski, engenheiro solitário sobrevivente de uma missão interplanetária fracassada, a trama começa de forma silenciosa, mas logo mergulha o jogador em temas como identidade, culpa, arrependimento e a essência do livre-arbítrio. Jan sobrevive ao pouso em um planeta hostil.
O resto da tripulação morre. Ele está isolado, sem chance imediata de resgate. Mas encontra algo que muda tudo: Rapidium, um elemento capaz de gerar versões alternativas de si mesmo — os Alters.
Clones ou pessoas? O limite entre identidade e individualidade
A premissa parece simples: usar tecnologia avançada para criar cópias de Jan, cada uma especializada em uma função — cozinheiro, médico, engenheiro, piloto, entre outras. Mas a genialidade está em como o jogo transforma isso em um debate existencial.
Cada Alter é gerado com base em um ponto de ramificação da vida de Jan. E se ele tivesse seguido outra carreira? E se tivesse feito escolhas mais altruístas? Ou mais egoístas?
Essas versões alternativas não são apenas variações técnicas. Elas têm memórias, sentimentos, opiniões. Não são apenas ferramentas — são pessoas. E logo você se vê cercado por versões de si mesmo que discordam, debatem, se frustram e, em alguns casos, se revoltam contra o “você” original.
Essa dinâmica entre os Alters é o coração da narrativa. O jogo te força a encarar a si mesmo, literalmente. A interagir com versões de você que poderiam ter sido. O que começa como uma jogada de design esperta, logo se transforma em algo emocionalmente desafiador.
Me vi evitando certos diálogos para não enfrentar verdades desconfortáveis, e buscando a companhia de Alters com os quais me identificava mais — mesmo sabendo que eram todos, no fundo, pedaços de mim.
Um ciclo de rotina e caos dentro da base
A estrutura da base é fascinante. Em forma de roda, ela exige que você construa módulos e salas específicas para garantir sobrevivência e mobilidade. A base precisa se mover constantemente para fugir da luz solar do planeta, que é letal. Isso cria um ciclo constante de urgência: coletar recursos, manter sistemas funcionando, cuidar do bem-estar dos Alters, e planejar o próximo deslocamento.
A jogabilidade lembra o sistema de camadas de This War of Mine, com perspectiva lateral e gestão de tarefas. Há algo hipnotizante em assistir os Alters se movendo entre os módulos, interagindo com equipamentos, relaxando ou, às vezes, se desentendendo. E tudo isso enquanto você precisa pensar em cada recurso, combustível, pesquisa científica e manutenção técnica.
E não pense que os Alters são apenas peões. Cada um tem vontades e preferências. Alguns pedem objetos pessoais para se sentirem mais confortáveis. Outros demonstram sinais de estresse, raiva ou frustração.
Há momentos de tensão em que debates filosóficos entre Alters tomam conta da rotina — e você precisa decidir como reagir. Atender a um pedido pode melhorar a moral e produtividade, mas negligenciar um deles pode afetar toda a cadeia de decisões futuras.
Exploração, perigos e paisagens estonteantes
Do lado de fora, The Alters entrega biomas deslumbrantes, com visuais que remetem à ficção científica clássica dos anos 1980 — Blade Runner, 2001, Moon. As paisagens são belíssimas, renderizadas com a força da Unreal Engine 5, mas o ambiente é sempre hostil.
A luz do sol é fatal. Os recursos são escassos. Cada incursão fora da base é um risco calculado. Você precisa explorar o mapa em busca de Rapidium, peças, artefatos e outros elementos essenciais para a manutenção da base e o progresso da narrativa.
Cada capítulo traz um novo mapa, com novos desafios ambientais e anomalias curiosas. Algumas dessas anomalias impactam diretamente a narrativa, trazendo mudanças imprevisíveis, como falhas de comunicação com a Terra ou efeitos nos Alters. É um mundo cheio de surpresas que, mesmo sendo hostil, tem uma beleza hipnótica.
Uma história que se ramifica — e permanece com você
A verdadeira força de The Alters está na história. A atuação de Alex Jordan como Jan e todos os seus Alters é impressionante. Cada voz transmite nuances distintas — mesmo quando é o mesmo ator. E a participação especial de Doug Cockle (o Geralt de The Witcher) como um dos contatos de Jan na Terra adiciona ainda mais peso dramático.
As escolhas importam. Desde decisões pequenas — como qual Alter criar primeiro ou como distribuir os turnos de trabalho — até momentos críticos, como resolver brigas ou lidar com dilemas morais profundos. Algumas dessas decisões não têm respostas fáceis. O jogo frequentemente te coloca em situações em que qualquer escolha terá um custo.
Essas decisões afetam tudo: o ritmo da história, o humor dos Alters, o funcionamento da base, e até mesmo os eventos futuros. The Alters não te recompensa com finais bons ou ruins — ele te dá consequências. E cabe a você lidar com elas.
Um sci-fi emocional com alma de literatura
Depois de mais de 30 horas de jogo, terminei minha primeira campanha com a sensação de ter vivido algo raro. A história é densa, bem escrita e, acima de tudo, humana. Mesmo com toda a estética sci-fi, com alta tecnologia e termos científicos, o que fica são as emoções: o remorso, a empatia, o medo, a curiosidade.
The Alters se aproxima mais de um romance de ficção científica de prestígio do que de um game tradicional. É como se Philip K. Dick tivesse escrito um simulador de sobrevivência. A combinação de temas filosóficos, narrativa ramificada, e decisões com peso real fazem do jogo uma das experiências mais ricas de 2025.
E, claro, tudo isso é embalado por uma trilha sonora impecável, com tons de sintetizadores oitentistas, que alternam entre o etéreo e o angustiante. Em vários momentos, me peguei apenas observando a paisagem enquanto a música tocava, absorvendo o peso do momento. É imersão no mais alto nível.
Reflexão, sofrimento e autoconhecimento
Poucos jogos me fizeram pensar tanto sobre mim mesmo quanto The Alters. O conceito de versões alternativas da própria vida é algo que todos já cogitamos: e se eu tivesse feito outra escolha?
E se tivesse seguido outro caminho? O jogo nos força a confrontar essas questões, não com teorias abstratas, mas com personagens que olham para você nos olhos e dizem: “Eu sou você. Mas fiz diferente.”
A carga emocional de lidar com essas versões alternativas é intensa. Às vezes, é inspiradora. Outras, dolorosa. Há Alters que te confrontam com seus piores defeitos. Outros que mostram quem você gostaria de ter sido. E em meio a tudo isso, você precisa sobreviver. Precisa fazer a base andar. Precisa não morrer. É um equilíbrio cruel, mas real — como a vida.
Veredito
The Alters é mais do que um jogo — é um espelho. Um experimento narrativo ousado, uma simulação de sobrevivência tensa, e um estudo profundo sobre identidade. Mesmo sem sistemas complexos de combate ou estruturas gigantescas de RPG, ele se destaca pela coragem de tocar em temas difíceis com sensibilidade e humanidade.
É o tipo de experiência que mexe com você depois de desligar o PC. Que te faz pensar sobre suas próprias escolhas, sua própria história, e os caminhos que deixou de seguir. E, talvez, sobre quem você poderia ter sido — ou ainda pode se tornar.