A voz das cidades na reforma tributária

É inegável a necessidade de uma reforma do sistema tributário nacional. O arcabouço legal tributário é complexo, extenso, burocrático e tem uma engrenagem arenosa que penaliza empreendedores e imputa obrigações acessórias em excesso ao poder público fiscalizador.

A mão do arrecadador é historicamente pesada: em 2021, a carga tributária bruta (razão entre a arrecadação de tributos nos três níveis de governo e o PIB a preços de mercado, em termos nominais) chegou a 32,95% do PIB, segundo a Receita Federal do Brasil.

Na prática, o contribuinte lida com 27 diferentes legislações de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), uma para cada Estado da Federação, e uma concorrência fiscal que concede benefícios a Estados que não são potencialmente mercados consumidores, mas produtores ou intermediadores.

O sistema tributário tem pesos e medidas que distorcem incentivos e podem travar o desenvolvimento econômico regional. A guerra fiscal é apresentada em muitas narrativas como vilã da história. Concorrência nunca é ruim, pelo contrário, ela é excelente quando feita em prol do interesse público e mediante convênio celebrado entre entes da federação (Confaz), dentro da legislação vigente.

A tábua da salvação da reforma tributária da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de número 45, defendida pela União, é um único imposto sobre valor agregado, o IVA. Em contraposição, a PEC 46, batizada de Simplifica Já, é defendida amplamente pelos Municípios. As cidades também querem o IVA.

Porém, a União quer um IVA que funda o ICMS, imposto estadual, com o ISS (Impostos Sobre Serviços), de competência municipal, sob a justificativa de que é difícil distinguir serviços de mercadorias, transformando exceções (a exemplo da confusão gerada por serviços e produtos de tecnologia) em regra. A PEC 46 unifica as legislações do ISS em separado da unificação das normativas de ICMS, numa tentativa de preservar a autonomia de política tributária dos municípios.

Um IVA baseado na junção do ICMS e do ISS limitaria a capacidade decisória das prefeituras na gestão dos seus recursos e aumentaria a responsabilidade dos Estados. Dessa forma, o IVA de base ampla, ICMS mais ISS,restringe a capacidade das prefeituras de gerir recursos de forma autônoma. A vida acontece nas cidades.

A reforma tributária defendida pela União eleva o receio de que lideranças comunitárias, que hoje movem administrações municipais em prol da construção de parques e praças e da promoção de ações assistenciais vívidas nas periferias, percam voz com a concentração de decisões de política tributária em âmbito estadual/federal.

O diálogo com as comunidades e bairros é, hoje, em muitos casos, feito diretamente com prefeitos e com vereadores. Mas a PEC 45 avança para um IVA de base ampla, reforçando a importância dos repasses em detrimento de ações que incentivem a geração de receita própria municipal. Cidades perdem autonomia com a reforma que está na mesa.

Que base ampla é essa? Não se sabe com precisão, pois ela será detalhada em Lei Complementar (LC) posterior. A PEC 45 promove diretrizes da reforma, mas o modus operandi virá apenas em LC. Temos um país com mais de 5,5 mil municípios, e muitos deles são majoritariamente dependentes de repasses federais e estaduais.

Na contramão da maioria, Vitória resgatou sua capacidade de geração de investimentos por meio de recursos próprios, e isso é fruto de uma gestão responsável sob a perspectiva fiscal. Um cenário proeminente para uma cidade que já chegou a fechar dois anos de exercícios em sucessivos déficits e, algumas vezes,registrou endividamentos líquidos positivos (um caixa inferior à dívida bruta).

A Capital fez seu dever de casa, saneou o caixa e, hoje (a preço do ano de 2022), o ISS representa 25% de toda a receita municipal de Vitória, enquanto as transferências estaduais e da União constituem 41% do total das receitas. Sozinho, o ISS representa ¼ de toda a receita não vinculada (sem destinação específica por lei) de Vitória.

O texto mais recente da reforma tributária prevê um critério de repasse de 65% da receita oriunda do IVA sob o critério do Fundo de Participação Municipal (FPM). Um dos indicadores do FPM é a população. Cidades com baixa população, porém com alta renda per capita, tendem a perder arrecadação.

Os restantes 35% do IVA serão repassados às cidades a critério do Estado. Essa incerteza impede que equipes técnicas municipais possam antecipar cenários de queda de arrecadação. Com o IVA proposto na PEC 45, mais de 60% da arrecadação municipal, a exemplo de Vitória (ES), estaria sob gestão do Estado e da União.

Sob a ótica de quem produz e paga o tributo, a reforma tributária parece beneficiar a indústria e pesar a mão sobre os serviços, sob o discurso de que o setor de serviços é “subtributado”. Difícil falar em “subtributação” em um país com uma carga de impostos tão pesada.

Há de se ter o cuidado de que a reforma produza um IVA cuja alíquota não transfira a carga da indústria para os serviços, sob a construção de que a cadeia produtiva industrial é longa, e que a indústria paga imposto sobre imposto, de forma cumulativa, havendo um sistema complexo de créditos a compensar. No fim do dia, o que se deseja é que a reforma não seja um instrumento de manutenção ou de aumento da carga, travestido de inovação. A ver.

Lorenzo Pazolini, prefeito de Vitória-ES
Neyla Tardin, secretária da Fazenda de Vitória-ES

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *