Geral

'Missão estrangeira minou democracia haitiana', diz analista

‘Missão estrangeira minou democracia haitiana’, diz analista ‘Missão estrangeira minou democracia haitiana’, diz analista ‘Missão estrangeira minou democracia haitiana’, diz analista ‘Missão estrangeira minou democracia haitiana’, diz analista

Assim que as primeiras notícias sobre o assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moise, foram publicadas na quarta-feira, analistas internacionais expressaram preocupação com a democracia haitiana. Mas esse enfraquecimento democrático foi acentuado por interferências estrangeiras durante a Missão de Paz da ONU realizada entre 2004 e 2017, segundo Ricardo Seitenfus, representante especial da OEA no Haiti entre 2009 e 2011.

Autor de Haiti – Dilemas e Fracassos Internacionais e A ONU e a Epidemia de Cólera no Haiti, o professor aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) fala nesta entrevista ao Estadão sobre a situação no Haiti.

• O que o assassinato de Jovenel Moise diz sobre a situação política e social do Haiti?

Diz que nós estamos em um processo extremamente perigoso, e atingindo patamares pouco usuais nas crises político-eleitorais haitianas. Em mais de 200 anos de história independente do Haiti, esse é o terceiro presidente a ser assassinado. Dezenas deles foram expulsos do poder por meio de impedimentos, de golpes, mas não se chegava a esse extremo. Havia, até mesmo, uma espécie de modelo de saída para uma ‘crise aguda política’, em que o perdedor recebia um passaporte diplomático, ia para o exterior, mas sempre houve um entendimento de que não se deveria tocar na figura do presidente, e muito menos na sua família. Então eu acho que nós alcançamos um patamar muito perigoso e inédito nas crises político-eleitorais haitianas.

• O que vai ser do processo eleitoral no país?

É a Constituição que rege isso. O que ela diz? Em caso de impedimento, falecimento, doença, nos últimos seis meses de mandato do presidente, é o primeiro-ministro que assume. O governo que organiza eleições em um prazo de três meses. E é isso que vai acontecer. O agravante aqui é que Moise havia designado um outro primeiro-ministro, que não tomou posse ainda. E ele já reivindicou o cargo. Isso cria uma situação um pouco mais complicada, mas espero que eles se acertem logo e a oposição tenha a capacidade de controlar seus apetites eleitorais.

• O senhor acredita que há força institucional para que o processo seja cumprido?

Sim. Isso se as forças estrangeiras, países supostamente próximos do Haiti, não interferirem. Pelo que eu sei, eles declararam apoio à institucionalidade, ao Estado de Direito e à Constituição haitiana.

• A investigação pode ser resolvida rapidamente ou permanecer sem solução. Qual dos dois causaria mais instabilidade?

Depende de para quem você pergunta. O assassinato tem implicações internas fortes em meios empresariais, com vínculos no exterior, porque os mercenários são estrangeiros. A eleição deveria ser feita à luz de todos os fatos, sobretudo porque não somente seria resolvido esse crime bárbaro, mas também nós poderíamos, a partir daí, tomar algumas medidas quanto a esses grupos que se escondem através do anonimato, se escondem através de doações a manifestantes, que se escondem através de financiamento de gangues. É um mundo paralelo que poderia vir à luz.

• Analistas apontam que o momento é de volatilidade. O que o senhor imagina dessa transição?

O povo haitiano é muito ordeiro, muito pacífico e adora viver. Quando aconteceu, eles ficaram absolutamente chocados e se recolheram em suas casas, seguindo a solicitação do governo. A oposição também foi sábia, pois sabe que, indiretamente, está por trás desse assassinato ao dar eco a todo tipo de acusação contra o presidente. O assassinato terrível

e bárbaro de Moise servirá para acalmar o jogo e levará a eleições e a assunção de um presidente novo em fevereiro de 2022. A oposição dizia que não iria às eleições com a presença de Moise. Ele dizia que não seria candidato, mas agora nem estará organizando as eleições. Então, não há nenhuma razão para a oposição não ir às eleições. A minha percepção é a de que nós teremos eleições e a situação se acalmará.

• A comunidade internacional vem atuando para garantir a estabilidade política no Haiti?

Não. Cada país está fazendo o seu jogo. A OEA tenta fazer o jogo da legalidade. As Nações Unidas acompanham a OEA. Os Estados Unidos, às vezes, atuam de alguma forma, mas a França, não. O Brasil é indiferente, não tem uma posição muito clara na relação da política externa com o Haiti. Apesar do nosso embaixador ser muito competente, Brasília não tem muito interesse. Eu não poderia falar de comunidade internacional, eu teria de falar de interesses nacionais de cada país e suas relações com o Haiti.

• Qual seria o interesse do Brasil?

O Brasil não tem interesse no mundo. Não tem interesse pela política externa. Isso já vem do final do governo da Dilma, veio se agravando com o Temer e agora está em um patamar inimaginável na nossa história diplomática.

• O que mudou no Haiti com a missão de paz?

Desde 1993, foram realizadas dez missões no Haiti, e a ONU permanece lá, com seu escritório de representação e de mediação política. No entanto, a Minustah (20042017) se destaca por várias razões, e a primeira é o custo, que é imensamente maior que o resto somado. Para nós que estávamos lá, a verdadeira missão era a Minustah. Se dizia, na época, que ela era a missão para resolver e não voltar mais. Só para o seu funcionamento, ela gastou US$ 9,6 bilhões. Mas falar o que melhorou é difícil, porque no meio da missão teve o terremoto de 2010. Ele embaralha todas as cartas e tira o foco da segurança. A missão passou a limpar a cidade, a conseguir abrigo para os desabrigados, perdeu o foco. A missão de paz deveria ter acabado em 2011 ou 2012, e teria que ter tido outros tipos de missão para reconstrução, uma missão civil. Perdemos muito tempo prorrogando algo que não deveria ser prorrogado.

• Qual o efeito da missão de paz?

Após o terremoto (de 2010), ao não dar prioridade às instituições haitianas, a missão, e o que se seguiu dela, ou seja, todas as doações para a reconstrução do Haiti, enfraqueceram o Estado e as instituições. Para que se tenha uma ideia, dos US$ 6,5 bilhões que foram doados, somente 1% passou pelo Estado haitiano. A presença internacional enfraqueceu, não somente as instituições, mas a própria democracia haitiana. Há exemplos onde a missão ou seus representantes intervieram em processos eleitorais. Afastaram o presidente René Préval em 2010. Eu falo isso porque eu participei da reunião e, como representante da OEA, impedi que acontecesse. É fato histórico, fato provado, e que mancha as missões de paz.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.