Todo mundo tem um filme favorito, uma música favorita. Aquela obra de arte que, quando assistimos ou ouvimos, atinge um lugar especial no nosso coração. Não deixa de ter um efeito terapêutico.
A psicanalista Renata Gentil entendeu esse efeito da música, e a usa em sua prática clínica. Mais especificamente, ela usa o rap. Nessa primeira parte da entrevista, ela nos explica como a ideia surgiu e como funcionam as consultas com música.
Para conhecer melhor o trabalho dela, você pode encontrá-la no Instagram (@psica.renatagentil) e no site oficial dela. Amanhã tem a segunda parte!
Entrevista com Renata Gentil
1 – Como surgiu o interesse por usar música no seu trabalho de psicanálise?
Quando eu estudei a técnica da livre associação, que é quando o paciente fala livremente pra acessar o inconsciente, eu pensei na hora: isso aqui é Batalha de Rima. Aquela impulsividade, aquela coisa de falar o que vem, sem filtro, me lembrou direto o que acontece numa roda de rap. E aí caiu a ficha: tem muito de psicanálise nisso. A rima, muitas vezes, é uma forma de colocar pra fora uma dor que não cabia mais no corpo — é o que a gente chama de sublimação. É quando a pessoa transforma aquilo que machuca em algo criativo. E, pra mim, isso já é uma forma de elaborar o trauma.
2 – Como exatamente funciona esse tratamento?
Muita gente chega até mim dizendo que tem dificuldade de falar sobre o que sente. E está tudo bem. Eu sou uma desconhecida, o cérebro quer se proteger. Então eu começo por algo que já faz parte do mundo da pessoa: a música que ela escuta. Peço a playlist, os cinco artistas favoritos e as três músicas preferidas de cada um. A partir disso, eu vou montando um mapa mental, antes mesmo da primeira sessão.
Na clínica, a gente conversa sobre o que cada música representa, o que ela sente quando escuta, por que aquele artista marcou tanto. E, com isso, eu vou ajudando ela a perceber padrões, afetos, dores, desejos que, às vezes, ela ainda não consegue nomear. É um processo que usa a música como porta de entrada, mas que segue todos os fundamentos da psicanálise, tanto da linha freudiana quanto da psicologia analítica de Dr. Carl Jung. A ideia é que, aos poucos, a pessoa vá conseguindo se escutar também. Que ela aprenda a se observar a partir da arte que consome, trazendo autonomia mental.
3 – Como o uso da música pode ser benéfico no contexto da psicanálise?
A música tem uma função muito bonita: ela consegue falar por nós quando a gente ainda não consegue. Às vezes, a dor é tão antiga ou tão mal resolvida que a pessoa não tem palavras. Mas aí ela chega com uma música e diz: “isso aqui sou eu”. E a gente começa a trabalhar a partir disso. Tem casos de pacientes que viveram traumas muito sérios e que encontram em certos artistas uma identificação profunda, porque aquele artista também passou por algo parecido. E, quando eles ouvem aquela letra, é como se alguém tivesse traduzido a dor deles em palavras. Isso abre uma porta pra elaborar. E a elaboração é o começo da cura.
Artistas como ferramenta terapêutica
Tem artistas que, por si só, já são terapêuticos. O Eminem, por exemplo, é um artista impactante — e não só pela técnica, mas pela história de vida. Ele passou por diversos tipos de trauma e, ainda assim, transformou isso em música. E o mais potente é que ele não fala dessas dores de forma fria ou distante. Ele fala de um jeito humano, cru, real. Isso faz com que muitas pessoas se identifiquem com ele e, a partir disso, comecem a ressignificar suas próprias dores. Muita gente em clínica me fala: “parece que ele disse o que eu não conseguia”. Isso já é sublimação. Ele sublimou a dor dele e acaba inspirando outros a fazerem o mesmo. Inclusive, eu realizo um trabalho social no Instagram junto com a página @eminemmemories, onde a gente compartilha semanalmente dicas terapêuticas usando trechos, vivências e letras do Eminem. É uma forma de aproximar as pessoas da saúde mental com acessibilidade e identificação.
Outro exemplo é o Tupac. Ele passou por situações extremamente complexas, desde uma infância marcada por violência, discriminação e pobreza. Mesmo assim, ele se tornou uma voz pra muitos — uma voz política, afetiva, cultural. Ele virou um símbolo. Um artista que canta a dor coletiva. Isso tem um efeito terapêutico muito forte. Ele não falava só por ele, ele falava por um povo inteiro.
No Brasil, a gente tem os Racionais MC’s. Recentemente, eles foram reconhecidos como doutores honoris causa pela Unicamp, o que, pra mim, é um marco histórico. Porque eles também falam sobre dores profundas e reais da população brasileira, especialmente da periferia. São letras que, muitas vezes, chocam — mas não é pelo choque em si, é porque escancaram realidades que sempre foram invisibilizadas. E, quando um paciente escuta aquilo e se sente visto, isso tem um efeito muito potente na clínica.
Então, esses artistas não só cantam — eles curam. Porque eles dão nome ao que muita gente sentiu e nunca conseguiu dizer. E, só de sentir que alguém sobreviveu a uma dor parecida, já começa um processo de transformação.