O vídeo sobre a adultização de crianças e adolescentes, publicado em agosto no canal do YouTube do influenciador Felipe Bressanim Pereira — conhecido como “Felca” —, surpreendeu o país e deu nova dimensão a um debate que vinha se arrastando em círculos acadêmicos e jurídicos.
A produção expôs perfis que exploravam a imagem de menores em redes sociais, revelou a lógica dos algoritmos que favoreciam a difusão desse tipo de conteúdo e alertou para os riscos e crimes decorrentes da superexposição infantojuvenil em plataformas digitais.
A repercussão foi imediata. O vídeo ultrapassou 49 milhões de visualizações em poucas semanas, gerou ameaças de morte ao seu autor, provocou denúncias formais de entidades de proteção da infância e resultou em medidas concretas: entre elas, a retirada de contas por grandes empresas de tecnologia e a prisão preventiva do influenciador Hytalo Santos e de seu marido, Israel Vicente, sob suspeita de exploração de menores.
Mais do que um episódio isolado, a publicação de Felca foi o estopim que trouxe urgência política e social ao tema da regulação digital.
O Projeto de Lei nº 2.628/2022, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que tramitava desde 2022, foi subitamente alçado à pauta prioritária do Congresso Nacional e, no último dia 17 de setembro, sancionado, com a publicação da Lei 15.211/25, denominada “Estatuto Digital da Criança e do Adolescente”.
A norma foi celebrada por diversas instituições do terceiro setor, como o Instituto Alana, e pela própria comunidade acadêmica, que há anos reivindicava legislação específica sobre a matéria.
É relevante registrar que, embora já existissem previsões no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e na Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), tais diplomas normativos não se mostravam suficientes para enfrentar as peculiaridades da proteção infantojuvenil no meio digital.
Adultização: conceito e implicações sociais
Por adultização compreende-se o processo pelo qual crianças e adolescentes são expostos a conteúdos, comportamentos e pressões típicas da vida adulta, especialmente em sua dimensão sexual e estética.
Esse fenômeno se manifesta em redes sociais por meio de vídeos, imagens ou postagens que exploram a aparência física de menores ou que incentivam padrões de comportamento incompatíveis com sua fase de desenvolvimento.
A questão, embora possa parecer apenas cultural ou moral, possui contornos jurídicos e médicos relevantes. Organizações de saúde alertam que a exposição precoce a tais conteúdos gera impactos sobre a autoestima, a formação da personalidade e a saúde mental de crianças e adolescentes.
Em termos jurídicos, a adultização compromete a proteção integral prevista no artigo 227 da Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), exigindo uma resposta normativa atualizada.
Dados recentes da SaferNet Brasil — entidade reconhecida pela atuação em denúncias de crimes digitais — indicam que mais de 70% das comunicações recebidas no primeiro semestre de 2025 relacionaram-se a abusos ou exploração sexual de menores.
Trata-se, portanto, de realidade concreta e alarmante, que exige atuação conjunta do Estado, da sociedade e das famílias.
Conteúdo normativo e principais inovações
O Estatuto Digital estabelece obrigações claras às plataformas digitais que operam no Brasil. Entre as mais relevantes, destacam-se:
(i) Bloqueio de conteúdos nocivos: a lei impõe às empresas a obrigação de impedir o acesso de menores a conteúdos relacionados à exploração sexual, pornografia, violência, cyberbullying, apologia ao suicídio, drogas e jogos de azar.
(ii) Vedação à monetização de material sexualizado com menores: postagens ou vídeos que envolvam crianças ou adolescentes em contexto erótico não poderão ser impulsionados nem gerar receitas publicitárias.
(iii) Ferramentas de controle parental: as plataformas devem disponibilizar instrumentos de fácil utilização para que pais e responsáveis limitem o tempo de uso, controlem contatos e bloqueiem funcionalidades como geolocalização.
(iv) Verificação efetiva da idade do usuário: não bastará a autodeclaração, exigindo-se mecanismos seguros de autenticação.
(v) Vinculação obrigatória a responsáveis legais: usuários menores de 16 anos somente poderão ter contas em redes sociais se estas estiverem associadas a um responsável.
(vi) Proibição das “loot boxes” em jogos eletrônicos: medida destinada a evitar práticas equiparadas a jogos de azar e que incentivam comportamentos compulsivos em menores.
A lei também prevê que conteúdos de exploração sexual ou de aliciamento, uma vez identificados, sejam imediatamente removidos e comunicados às autoridades competentes.
Mecanismos de fiscalização e sanções
Um dos diferenciais do novo estatuto é a previsão de sanções administrativas severas. As plataformas que descumprirem as obrigações estarão sujeitas a advertências e multas que podem alcançar 10% do faturamento do grupo econômico, limitadas a R$ 50 milhões por infração.
A fiscalização será exercida por uma autoridade administrativa autônoma, a ser criada com atribuições regulatórias, normativas e sancionatórias. Essa opção legislativa dialoga com modelos já existentes em outros países e reforça a necessidade de atuação técnica e independente, em consonância com a doutrina da proteção integral.
Desafios de efetividade
A experiência demonstra que legislar não é suficiente. O êxito da norma dependerá de sua efetiva fiscalização e da capacidade técnica de implementação das obrigações impostas.
Questões como a verificação segura da idade do usuário e a supervisão de algoritmos representam desafios tecnológicos e jurídicos de grande complexidade.
A experiência do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados mostra que o caminho da efetividade requer investimento estatal, campanhas educativas e cooperação entre poder público, empresas e sociedade civil.
O papel das famílias e das instituições educacionais
Ainda que o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente represente avanço jurídico considerável, não se pode ignorar a relevância da participação ativa das famílias e das escolas. O ambiente digital, por mais regulado que seja, continuará exigindo orientação, diálogo e acompanhamento.
Nesse ponto, a educação digital se apresenta como instrumento indispensável. Programas escolares voltados à cidadania digital, ao uso consciente da tecnologia e à prevenção de riscos online são essenciais para que crianças e adolescentes compreendam seus direitos, deveres e limites no ciberespaço.
A internet como espaço de aprendizado, convivência e lazer
O Estatuto Digital da Criança e do Adolescente inaugura um novo paradigma de proteção jurídica no Brasil, alinhando-se às tendências internacionais de regulação das plataformas digitais.
Mais do que um conjunto de obrigações técnicas, trata-se da reafirmação de que crianças e adolescentes merecem prioridade absoluta, inclusive no ambiente virtual.
A lei não elimina todos os riscos, mas sinaliza a disposição do Estado brasileiro de atuar com firmeza diante de violações que ameaçam a dignidade e o desenvolvimento saudável da infância. Cabe agora às autoridades, às empresas e à sociedade civil transformar o texto legal em realidade concreta, para que a internet se torne espaço de aprendizado, convivência e lazer, e não de exploração e violência.