martelo de juiz
Foto: Canva

A convivência cotidiana entre consumidores e operadoras de planos de saúde revela um cenário cada vez mais tensionado. A crescente migração dos beneficiários para planos coletivos — empresariais ou por adesão — transformou profundamente o mercado e, reflexamente, a dinâmica dos litígios que chegam ao Poder Judiciário.

Em síntese, o que está em jogo é o equilíbrio entre a sustentabilidade econômica das operadoras e a proteção da saúde como direito fundamental.

Nos últimos anos, os planos coletivos passaram a ocupar um papel predominante: hoje representam mais de 80% das contratações no país.

Essa realidade, longe de ser neutra, decorre de um ambiente regulatório que permite reajustes mais elevados, rescisões unilaterais e menor ingerência da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) sobre contratos coletivos com menos de 30 vidas.

O resultado é que o consumidor — sobretudo o pequeno empreendedor, o trabalhador autônomo e o profissional liberal — encontra-se vulnerável diante de cláusulas restritivas, aumentos abruptos e cancelamentos inesperados.

Não se pode perder de vista que, para muitas famílias, o plano de saúde tornou-se tão essencial quanto o aluguel ou a alimentação.

Assim, quando ocorre a negativa de cobertura, a aplicação indevida de reajuste ou o cancelamento imotivado, atinge-se diretamente a dignidade da pessoa humana, princípio estruturante da Constituição.

O Poder Judiciário tem sido chamado a intervir com frequência. A Justiça capixaba, não raras vezes, concede liminares para impedir cancelamentos em massa ou determinar o custeio de tratamentos médicos urgentes, inclusive em casos dramáticos envolvendo crianças, idosos ou pacientes oncológicos.

Entretanto, a judicialização excessiva, embora necessária em situações de abuso, também revela um sistema que não funciona adequadamente na esfera administrativa.

Nesse ponto, impõe-se destacar um fenômeno que tem ganhado relevo nos tribunais de todo o país: a chamada falsa coletivização.

Trata-se de contratos formalmente enquadrados como coletivos — muitas vezes por adesão — mas que, na prática, reúnem número reduzido de beneficiários, em geral membros de uma mesma família, sem verdadeira característica de mutualismo ampliado.

Esses arranjos, utilizados por operadoras e administradoras para fugir do controle regulatório, têm resultado em reajustes significativamente superiores àqueles aplicados aos planos individuais.

O problema é estrutural: enquanto os planos individuais estão submetidos ao teto de reajuste definido pela ANS — de 6,91% para o ciclo 2024/2025 e de 6,06% para o ciclo 2025/2026 — os planos coletivos permanecem sem qualquer limite prévio, sujeitos apenas a critérios internos de sinistralidade e VCMH, nem sempre transparentes ou tecnicamente demonstrados.

Essa assimetria tem resultado em aumentos de dois dígitos, ano após ano, pressionando famílias a migrarem para modalidades supostamente coletivas apenas para fugir do alto custo dos planos individuais disponíveis no mercado.

É justamente nesse contexto que surgem as inúmeras ações judiciais visando à substituição dos reajustes aplicados pelos índices oficiais da ANS, sob o fundamento de que, configurada a falsa coletivização, o contrato deve ser tratado como plano familiar ou individual.

O Superior Tribunal de Justiça, em reiterados julgados, tem validado esse entendimento, reconhecendo que a presença de poucos beneficiários — sobretudo quando se trata de parentes entre si — desnatura a natureza coletiva do pacto, atraindo a disciplina protetiva dos contratos individuais.

No Agravo Interno (AgInt) no Agravo em Recurso Especial (AREsp) 2.366.300/SP, a Corte reafirmou que planos com apenas sete ou oito vidas, todas da mesma família, constituem coletivo atípico, devendo seguir exclusivamente os reajustes da ANS.

O resultado prático é um ambiente de grande insegurança jurídica.

De um lado, consumidores submetidos a aumentos excessivos, muitas vezes sem comprovação atuarial mínima; de outro, operadoras que defendem a liberdade contratual própria dos planos coletivos e alegam interferência indevida do Judiciário na regulação econômico-atuarial do setor.

Em síntese, o que está em jogo é a definição de limites razoáveis para evitar abusos, sem comprometer a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar.

A ANS, embora importante, enfrenta limites estruturais e normativos. A regulação dos planos coletivos — especialmente aqueles com menos de 30 vidas — permanece frágil, permitindo que operadoras adotem práticas questionáveis sem sofrer responsabilização imediata.

A ausência de transparência nos critérios de reajuste e a dificuldade de portabilidade entre modalidades agravam ainda mais o problema.

Em síntese conclusiva, o fenômeno do falso coletivo não pode ser tratado como mera distorção comercial ou irregularidade pontual.

Ele representa uma afronta direta ao equilíbrio contratual e à boa-fé objetiva, na medida em que expõe famílias inteiras — muitas vezes ingressando em planos coletivos por ausência de alternativas viáveis no mercado individual — a reajustes imprevisíveis e potencialmente confiscatórios.

Por isso, a resposta jurisdicional que vem se consolidando — no sentido de reclassificar contratos falsamente coletivos e impor a aplicação dos índices regulados pela ANS — representa não um intervencionismo indevido, mas a restauração do equilíbrio contratual.

Flávio Cheim Jorge

Colunista

Advogado nas áreas do direito cível, empresarial e administrativo, é Mestre e Doutor pela PUC/SP, sendo ainda, Professor Titular na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Já exerceu o cargo de Juiz Eleitoral Titular – classe dos Juristas - no Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES)

Advogado nas áreas do direito cível, empresarial e administrativo, é Mestre e Doutor pela PUC/SP, sendo ainda, Professor Titular na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Já exerceu o cargo de Juiz Eleitoral Titular – classe dos Juristas - no Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES)