Poucos momentos geram tantos conflitos quanto a partilha de uma herança ou a divisão de bens após o fim de um casamento. É comum que, diante da morte dos pais, um dos filhos permaneça sozinho no imóvel da família, enquanto os demais seguem suas vidas.
Anos depois, surge a pergunta: aquele herdeiro tem mais direito que os outros? Situação parecida ocorre quando, após a separação, apenas um dos ex-cônjuges continua usando o imóvel, arcando sozinho com todas as despesas.
A dúvida é recorrente: quem permanece no imóvel por longo tempo, de forma exclusiva, pode se tornar seu único dono, por usucapião? É justamente sobre isso que este artigo trata.
Os bens da herança como condomínio
Com a morte, os bens do falecido são transferidos automaticamente aos seus herdeiros, através do que se denomina princípio da saisine. Esse princípio explica que, com a morte e a abertura da sucessão, a herança é transmitida de forma imediata, sem necessidade de formalidades.
A partir dessa transmissão, forma-se um condomínio entre os herdeiros, aplicando-se as regras próprias deste instituto até a realização da partilha, a ser efetivada no processo de inventário, judicial ou extrajudicial.
Isso significa que, enquanto não realizada a partilha, ainda que existam vários bens e herdeiros, a herança será vista como um todo unitário. Cada herdeiro é, ao mesmo tempo, proprietário e possuidor de uma fração ideal em cada um desses bens.
Por consequência, todos os herdeiros possuem o direito de utilizar-se do patrimônio, dividir as despesas e beneficiar-se de seus frutos. Sendo a coisa comum, eventuais divergências devem ser resolvidas pela vontade da maioria.
A posse exclusiva de apenas um herdeiro
Não é incomum que determinado imóvel da herança passe a ser utilizado de forma exclusiva por apenas um dos herdeiros. Esse herdeiro, muitas vezes, além de morar no imóvel, paga todas as contas, realiza reformas, aluga parte da propriedade sem dividir valores e, ao longo do tempo, passa a agir como se fosse o único dono.
É nesse contexto que surge a dúvida: é possível que um herdeiro adquira a propriedade exclusiva do bem por meio da usucapião?
São muitos os casos que ilustram essa situação.
Imagine, por exemplo, que três irmãos herdam a casa dos pais. Dois deles se mudam para outras cidades e não demonstram qualquer interesse no local. O terceiro permanece no imóvel por mais vários anos, paga sozinho todos os impostos e contas, amplia a casa com recursos próprios e nunca divide despesas.
Ou pense na filha que, após a morte dos pais, permanece no imóvel, aluga parte da residência, fica com os valores e age, em todos os sentidos, como se fosse a única dona. Os irmãos, por conveniência ou desinteresse, jamais contestaram tais fatos.
Diante desse contexto, é que surge a dúvida se o herdeiro pode adquirir a propriedade exclusiva deste bem por usucapião.
Importa observar que o instituto da usucapião consiste na aquisição originária da propriedade de um bem, por aquele que possui a sua posse, sem oposição, durante um determinado período e com intenção de ser dono (animus domini).
Pois bem.
Num primeiro momento, poder-se-ia entender que a pergunta acima deveria ser respondida negativamente, afinal de contas, todos demais herdeiros são igualmente possuidores e proprietários das parcelas daquele bem que se pretende usucapir (adquirir por usucapião).
No entanto, não é esse o entendimento que prevalece em nosso ordenamento jurídico. O Superior Tribunal de Justiça, em recurso de relatoria da prestigiada Min. Nancy Andrighi (REsp. 1.631.859/SP), decidiu um caso em que uma irmã utilizava sozinha um imóvel herdado, enquanto o irmão nunca demonstrara interesse ou oposição.
O STJ concluiu que era possível reconhecer a usucapião em desfavor do irmão – o outro herdeiro/condômino –, pois restara provado que ela exerceu posse exclusiva, com atos de verdadeira proprietária, pelo prazo mínimo de 15 anos.
O paralelo com a separação
Esse raciocínio não se limita às heranças. Situação semelhante pode ocorrer no divórcio ou na separação.
Quando o casal se separa, mas não realiza a partilha, o imóvel comum continua submetido às regras do condomínio. Em alguns casos, apenas um dos ex-cônjuges permanece no bem, usufruindo-o de forma exclusiva, arcando sozinho com despesas e tratando o imóvel como se fosse apenas seu.
Nessas circunstâncias, também é possível que o tempo e a realidade da posse exclusiva levem ao reconhecimento da usucapião, consolidando a propriedade em nome de quem efetivamente exerceu o domínio.
Requisitos necessários
Não se pode, contudo, simplificar o tema. O fato de um herdeiro ou ex-cônjuge permanecer sozinho em um imóvel não significa, por si só, que ele se tornará proprietário exclusivo.
Para que isso aconteça, é indispensável que a posse seja realmente exercida como de dono único, de forma clara e incontestável. Isso exige atos concretos: arcar sozinho com os impostos e despesas, reformar e conservar o imóvel em nome próprio, usufruir de seus frutos sem prestar contas e, principalmente, afastar qualquer possibilidade de uso pelos demais.
Em outras palavras, não basta apenas residir no imóvel ou contar com a tolerância silenciosa da família. É necessário demonstrar, de maneira inequívoca, que a comunhão deixou de existir na prática, porque um deles assumiu integralmente a condição de proprietário.
Posse exclusiva e incontestável
Em síntese, tanto no caso da herança quanto no da separação conjugal, o que autoriza a usucapião não é a simples permanência de um no imóvel, mas a posse exclusiva, contínua, incontestável e com verdadeira intenção de dono.
Não se trata de um atalho para suprimir direitos de familiares ou ex-cônjuges, mas de um mecanismo jurídico que reconhece a realidade consolidada pelo tempo.
A mensagem é clara: se a copropriedade deixou de existir na prática, porque um assumiu sozinho todas as responsabilidades e os demais permaneceram inertes, a lei permite que a propriedade seja regularizada em nome de quem efetivamente se comportou como dono.