Sessão no plenário do Supremo Tribunal Federal STF
Sessão no plenário do Supremo Tribunal Federal. Foto: Bruno Moura/STF

Por muito tempo, a comunicação de massa foi estruturada em um modelo vertical. Jornais, rádios e emissoras de televisão detinham poder editorial concentrado: de um emissor para muitos receptores.

A circulação de informações, ainda que ampla, dependia de filtros profissionais e de parâmetros jurídicos bem definidos. Nesse ambiente, a responsabilização por danos decorrentes da publicação de conteúdos ilícitos era mais previsível.

Sabia-se exatamente quem respondia civil e criminalmente por calúnia, difamação, ofensa à honra ou divulgação de informações falsas.

Surgimento da internet desloca paradigma

O surgimento da internet deslocou esse paradigma. A comunicação tornou-se horizontal e onipresente. Redes sociais, blogs, fóruns e plataformas de comércio passaram a transformar cada usuário em potencial produtor de conteúdo.

Essa mudança inaugurou dilemas jurídicos que o país procurou enfrentar, de forma inovadora, com o Marco Civil da Internet (“MCI” – Lei nº 12.965/2014).

Marco Civil da Internet: construção democrática e princípios estruturantes

A construção do Marco Civil da Internet (MCI) foi marcada por uma experiência inédita de participação democrática na elaboração legislativa.

Ela resultou uma consulta pública em ambiente digital, realizada entre os anos de 2009 e 2011.

O texto legal foi concebido a partir de uma plataforma aberta, colaborativa e multissetorial, que envolveu usuários, juristas, pesquisadores, representantes da sociedade civil e do setor privado.

A proposta final foi enviada ao Congresso Nacional em 2011 e resultou na promulgação da Lei nº 12.965/2014, considerada internacionalmente uma referência positiva de regulação da internet.

Foto: Freepik

O MCI consagrou princípios estruturantes da internet no Brasil, entre os quais se destacam a liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, a proteção da privacidade, a preservação da estabilidade e da funcionalidade da rede, a responsabilização dos agentes conforme sua atuação e a proteção dos dados pessoais.

É uma norma orientada não apenas à disciplina técnica do uso da rede, mas à preservação de valores constitucionais em ambiente digital. Sob o rótulo da “Responsabilização por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”, a Lei estabeleceu basicamente dois regimes distintos.

O primeiro, previsto no art. 19, que prevê a responsabilidade do provedor se, após ordem judicial específica, deixar de tornar indisponível o conteúdo considerado infringente. Esse modelo tem por objetivo declarado o de proteger a liberdade de expressão e evitar formas indiretas de censura privada.

O segundo, descrita no art. 21, prevê um regime distinto, aplicável às situações em que haja violação da intimidade decorrente da divulgação não autorizada de cenas de nudez ou atos sexuais de caráter privado.

Nesses casos, o provedor pode ser responsabilizado independentemente de ordem judicial, bastando para tanto o recebimento de notificação válida do participante ou de seu representante legal, com a devida identificação do material.

Trata-se, portanto, da tutela urgente de direitos da personalidade de altíssima sensibilidade – que dispensa a prévia necessidade de intervenção do Poder Judiciário.

Antes do Marco Civil: a jurisprudência e o caso Aliandra

Alguns julgados, anteriores à edição do Marco Civil da Internet, já haviam delineado critérios de responsabilização dos provedores pela manutenção de conteúdos ofensivos após ciência inequívoca da ilicitude. Foi o que ocorreu, por exemplo, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 660.861/MG, relativo ao Tema 533 da Repercussão Geral.

Naquele caso, a Turma Recursal de Belo Horizonte condenou a Google Brasil pela omissão diante de uma comunidade ofensiva criada no extinto Orkut (“Eu odeio a Aliandra”), mesmo após notificação extrajudicial.

O entendimento era o de que, ao tomar conhecimento do conteúdo ilícito e se manter inerte, o provedor assumiria corresponsabilidade civil.

Essa linha interpretativa, entretanto, viria a ser superada, como visto, com a entrada em vigor do MCI, que condicionou a responsabilização civil, como regra geral, à existência de ordem judicial específica para remoção do conteúdo.

O julgamento do STF e a (re)interpretação do artigo 19 do MCI

O Tema 987 da Repercussão Geral, julgado em 2025 pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 1.037.396/SP, reabriu essa discussão sob uma nova perspectiva constitucional.

A controvérsia teve origem em ação proposta por uma usuária do Facebook contra a criação de um perfil falso que utilizava sua imagem e dados pessoais para ofender familiares. A sentença de primeiro grau negou a indenização, aplicando o art. 19 do Marco Civil.

No entanto, a Turma Recursal de Piracicaba reformou a decisão, declarou a inconstitucionalidade do referido artigo e reconheceu a responsabilidade civil da plataforma com base no Código de Defesa do Consumidor.

Em junho de 2025, o STF declarou a inconstitucionalidade parcial e progressiva do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

A tese aprovada fixou que a exigência de ordem judicial prévia e específica, como condição para responsabilização dos provedores de aplicação, não oferece proteção suficiente a bens jurídicos de alta relevância (proteção dos direitos fundamentais e da democracia).

A nova tese fixada: critérios complementares e responsabilidade ampliada

Sob o expresso “Apelo ao Legislador… para que seja elaborada legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime”, o STF estabeleceu critérios complementares para a responsabilização civil dos provedores.

A tese fixada prevê que:

  • (i) os provedores serão responsáveis caso, após notificação extrajudicial, não torne indisponível o conteúdo apontado como infringente, em casos de crime ou atos ilícitos, ou contas denunciadas como inautênticas;
  • (ii) nos crimes contra a honra, dada sua natureza subjetiva, entendeu-se como indispensável a prévia a autorização judicial;
  • (iii) em casos de crimes graves — como terrorismo, induzimento ao suicídio, incitação à violência ou discriminação, pornografia infantil e violência contra a mulher — os provedores têm o dever de agir imediatamente para tornar o conteúdo indisponível, sob pena de responsabilização por falha sistêmica;
  • (iv) há presunção de responsabilidade civil quando o conteúdo ilícito for veiculado por meio de anúncios pagos, impulsionamentos remunerados ou em redes artificiais de distribuição;
  • (v) a repetição de conteúdo já declarado ilícito judicialmente impõe o dever de remoção, mediante simples notificação;
  • (vi) impõem-se ainda deveres de estruturação de regras de autorregulação, relatórios de transparência, canais de denúncia e representação legal no Brasil com capacidade plena de resposta.

Censura colateral e os riscos do novo modelo

O novo paradigma estabelecido pelo STF, embora preocupado com a tutela de direitos fundamentais relevantes, exige atenção redobrada quanto aos efeitos colaterais da flexibilização das garantias procedimentais previstas no Marco Civil da Internet, notadamente, quanto às situações fático-jurídicas mencionadas no item “i”, acima.

O principal risco apontado, como reforçado no voto vencido do Min. Edson Fachin, no referido julgado do STF, é o da censura colateral, fenômeno pelo qual os intermediários privados passam a remover preventivamente conteúdos lícitos ou controversos por receio de serem responsabilizados judicialmente.

A imposição de um regime de responsabilização direto e amplo pode comprometer a liberdade de manifestação e a pluralidade democrática na rede.

Não é demais lembrar, que a lógica da censura colateral é típica de ambientes autoritários, em que a ameaça jurídica contra plataformas acaba por induzi-las a atuar como moderadoras privadas do debate público, muitas vezes com critérios obscuros, desproporcionais ou movidos por interesses comerciais.

A substituição da ordem judicial por notificações unilaterais ou por presunções automáticas de ilicitude enfraquece as salvaguardas processuais e pode produzir uma assimetria de poder no controle da circulação da informação.

Ao mesmo tempo, delega a atores privados – por vezes sem transparência ou accountability – a responsabilidade de decidir o que pode ou não permanecer publicado. Trata-se, como alertou o ministro Edson Fachin, de transferência implícita de poder regulatório, em desacordo com o modelo constitucional da responsabilidade ulterior.

Liberdade de expressão e o papel do Judiciário: o ponto de equilíbrio

Não se ignora a gravidade dos conteúdos combatidos pela decisão: crimes de ódio, violência contra minorias, pornografia infantil, desinformação estruturada, que a partir da decisão do STF poderão ser retirados do ar pelo próprio provedor, sem a necessidade de decisões judiciais.

No entanto, a resposta normativa para esses fenômenos complexos não pode ser a desestruturação dos princípios do devido processo, da liberdade de expressão e da responsabilidade proporcional, sob pena de transformar a exceção em regra.

A liberdade de expressão, tal como prevista no art. 5º, IV e IX, da Constituição, não é apenas um direito individual, mas uma garantia institucional do sistema democrático.

A preservação desse espaço de manifestação exige equilíbrio, prudência e, sobretudo, a permanência de controle judicial como instância legítima de ponderação.

Flávio Cheim Jorge

Colunista

Advogado nas áreas do direito cível, empresarial e administrativo, é Mestre e Doutor pela PUC/SP, sendo ainda, Professor Titular na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Já exerceu o cargo de Juiz Eleitoral Titular – classe dos Juristas - no Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES)

Advogado nas áreas do direito cível, empresarial e administrativo, é Mestre e Doutor pela PUC/SP, sendo ainda, Professor Titular na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Já exerceu o cargo de Juiz Eleitoral Titular – classe dos Juristas - no Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES)