*Artigo escrito por Rafael Lima e Mariah Sartório, advogados criminalistas, especializados em Direito Penal Econômico, sócios do Rafael Lima Advogados.
A Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, completa 35 anos em 2025 — e pede leitura crítica. A legislação teve papel decisivo ao criar instrumentos para responsabilizar fraudes fiscais e abusos contra consumidores, colocando no papel uma resposta que, à época, parecia moderna e necessária.
É preciso lembrar o contexto em que a lei nasceu: final de 1990, antes da internet comercial e do ecossistema de ativos digitais.
Muitos dos tipos penais e hipóteses de proteção ao consumidor previstos na norma seguem válidos — sobretudo os textos dos artigos que tratam das relações de consumo — mas a realidade econômica mudou radicalmente desde então. Essa distância entre letra e mundo real explica parte das dificuldades de aplicação hoje.
Uma reforma inteligente deveria incorporar conceitos digitais, prever mecanismos de investigação forense cibernética, regular de modo claro a atuação de plataformas e empresas digitais com sede no exterior e oferecer instrumentos para enfrentar a manipulação algorítmica por IA.
Mas essa modernização tem de ser feita com cautela: priorizar meios administrativos, fiscais e regulatórios antes de expandir o alcance penal evitará riscos de insegurança jurídica e de criminalização excessiva.
Enquanto isso, atualmente, na prática, a Lei 8.137/1990 tem sido mais utilizada em operações voltadas ao combate à sonegação e às fraudes tributárias.
Grandes investigações e ações fiscais mostram que, no cotidiano, o instrumento penal tende a ser acionado especialmente para perseguir esquemas de fraude fiscal como instrumento de coação ao devedor de tributos.
Essa ênfase contribui para uma percepção pública de que a lei é, sobretudo, ferramenta contra crimes tributários — ainda que também exista previsão penal para condutas que lesam consumidores.
Neste aspecto, o que se vê na prática quanto aos delitos consumeristas, ao contrário do tratamento expendido aos crimes fiscais, é um verdadeiro desvirtuamento da política criminal, onde, frequentemente, gerentes de mercados e mercadinhos, pessoas que estão ali cumprindo seu contrato trabalhista, são presos após fiscalização administrativa, em razão de mercadorias com data de validade vencida.
O desafio atual que põe em evidência a defasagem do dispositivo é o das operações digitais e das criptomoedas: investigações recentes apontaram o uso de criptoativos como meio para movimentar recursos e ocultar operações ilícitas, o que obriga autoridades a atualizar técnicas de investigação e cooperação internacional.
A Receita Federal, por exemplo, já divulgou operações e ferramentas dirigidas a identificar fraudes envolvendo moedas digitais, mostrando que a fiscalização está se adaptando, mas que o arcabouço legal às vezes fica atrás das práticas econômicas.
É preciso sempre lembrar que o direito penal deve ser, de fato, a ultima ratio (“última razão””. Com isso, instrumentos como acordos de leniência e programas de compliance mostram que é possível punir sem destruir cadeias produtivas inteiras, incentivando a cooperação e a correção de condutas.
Por outro lado, é preciso que o empresário faça sua parte, instituindo programas de integridade sólidos. O compliance fiscal e empresarial surge, portanto, como parceiro da lei e da empresa.
Programas de integridade bem desenhados previnem fraudes, demonstram boa-fé e reduzem drasticamente o risco de responsabilização penal de gestores e empresas. Investir em prevenção significa menos processos, menos rupturas sociais e mais previsibilidade para o mercado; é um caminho que combina utilidade pública e eficiência privada.
Ao completar 35 anos, a Lei 8.137/1990 nos convoca a um exercício de equilíbrio: reconhecer a importância histórica da norma, aceitar suas limitações diante da economia digital e apontar soluções práticas — compliance, leniência, investimentos em tecnologia de fiscalização e ajustes legislativos cirúrgicos.
Defender consumidores, tributar corretamente e preservar empregos não são objetivos contraditórios, são faces de uma mesma política pública que precisa de maturidade técnica e coragem política para evoluir.