A recente condenação do humorista Leo Lins a mais de oito anos de prisão por piadas com conteúdo discriminatório provocou intenso debate jurídico e social.
A sentença proferida, pela 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, ao enquadrá-lo nas Leis nº 7.716/89 (Lei do Racismo) e 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), expôs com clareza a complexa interseção entre o direito fundamental à liberdade de expressão e a proibição do discurso de ódio.
A controvérsia levanta um ponto sensível: até que ponto a liberdade de expressão pode proteger manifestações artísticas que ofendem, humilham ou discriminam?
Liberdade de expressão x atividade artística
A liberdade de expressão está consagrada na Constituição da República, especialmente no art. 5º, incisos IV e IX, que asseguram a livre manifestação do pensamento e a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.
A atividade artística, por sua vez, ocupa posição de destaque nesse sistema protetivo, sendo considerada expressão qualificada da liberdade de criação e pensamento.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu que a atividade humorística é equiparada à liberdade de imprensa, dada sua função crítica e social.
Humor participa da formação da opinião pública
O humor, assim como o jornalismo, participa da formação da opinião pública e do debate democrático, merecendo, por isso, proteção constitucional reforçada (ADI 4.451).
De outro, no entanto, como é recorrente no campo dos direitos fundamentais, trata-se de um direito que não é absoluto.
Ele deve ser interpretado em conjunto com outros valores igualmente previstos no texto constitucional: “Art. 3º.
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…) IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
É nesse contexto que se insere o chamado “discurso de ódio” — expressão que designa manifestações que atacam indivíduos ou grupos com base em características como raça, etnia, religião, orientação sexual ou deficiência, com o propósito de incitar a intolerância, a exclusão ou o preconceito.
Trata-se de um fenômeno social relevante e juridicamente enfrentado por diversos países democráticos, com legislações específicas que buscam, justamente, equilibrar a liberdade de expressão com o combate à desigualdade estrutural.
Piadas de Leo Lins e a condenação
No caso concreto de Leo Lins, as piadas divulgadas atingiam pessoas com deficiência, negros e povos indígenas.
A sentença condenatória entendeu que tais manifestações não apenas extrapolavam o mau gosto ou a irreverência típica do humor ácido, mas configuravam incitação à discriminação.
O fundamento central da decisão foi que a liberdade artística não poderia ser invocada como salvo-conduto para a prática de crimes de ódio.
O show em que os conteúdos foram proferidos levava o título “Leo Lins – Perturbador” e foi publicado e amplamente distribuído em redes sociais vinculadas ao humorista, especialmente por meio da plataforma de streaming YouTube, alcançando milhares de visualizações.
Além da pena de 8 anos e 6 meses de reclusão, o humorista também foi condenado ao pagamento de R$ 303.600,00 a título de indenização por danos morais coletivos.
Proteção constitucional da liberdade de expressão
Há que se observar que a sentença condenatória não deixou de reconhecer a proteção constitucional da liberdade de expressão e da criação artística, mas ressaltou que essa liberdade deve coexistir com os demais direitos constitucionais, em especial a dignidade humana.
Para aquele juízo, o humor não se configurou como instrumento de crítica ou ironia voltada à reflexão, mas como reforço de estigmas históricos e de exclusão social.
O dolo específico, decisivo para a configuração do tipo penal, decorreu da consciência, das “declarações depreciativas e injuriosas contra as pessoas idosas, gordas, portadoras do vírus HIV, homossexuais, judeus e negros”.
Paralelamente, importa observar que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Reclamação Constitucional (RCL 60382/SP) contra decisão que proibia preventivamente a apresentação do espetáculo, reafirmou que a atividade humorística goza da mesma proteção conferida à liberdade de imprensa.
Na decisão do ministro André Mendonça, ficou assentado que a censura prévia é vedada pelo texto constitucional, e que eventuais excessos devem ser apurados apenas após a veiculação do conteúdo, sob pena de violação à cláusula da liberdade de expressão.
Com efeito, o debate não gira em torno da simples censura ou repressão ao conteúdo humorístico, mas da identificação do momento em que a manifestação artística, ao invés de contribuir para a expressão cultural, o exercício da crítica social e política, ou ainda, transformação social, reforça estruturas de opressão e preconceito.
Crítica social e a liberdade criativa
O desafio está em preservar a crítica social e a liberdade criativa sem permitir que se disfarce, sob o rótulo de humor, a perpetuação de práticas discriminatórias.
A jurisprudência brasileira tem reconhecido que a responsabilização posterior por manifestações artísticas é possível quando se demonstrar violação concreta a outros valores constitucionais.
A liberdade de expressão continua sendo a regra, mas sua fruição deve ocorrer dentro do marco do respeito à dignidade humana.
Na prática, a solução de casos como esse exige um juízo de ponderação entre direitos fundamentais em tensão.
Liberdade artística e dignidade da pessoa humana são bens constitucionais igualmente relevantes, e a sua colisão deve ser resolvida, ao menos por ora, no caso concreto.
Até que o Supremo Tribunal Federal estabeleça parâmetros mais claros para esse tipo de embate, não há fórmula pronta.
Há, sim, a necessidade de equilíbrio, responsabilidade e sensibilidade constitucional.