
Recentemente tive a oportunidade de participar, como professor convidado, de uma banca de doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O trabalho, apresentado por José Saraiva, enfrentava com rara profundidade um tema crucial para a democracia brasileira: o desenho institucional do Supremo Tribunal Federal (STF) e os efeitos que esse modelo tem irradiado sobre o equilíbrio entre os Poderes.
A leitura da tese e o debate acadêmico que se seguiu reforçaram uma convicção: o que vivemos hoje não é um problema de ministros, nem de decisões isoladas, mas de arquitetura constitucional.
Em síntese, o que está em jogo é compreender porque o STF, originalmente concebido como guardião da Constituição, passou a decidir cotidianamente temas de política pública, comunicação digital, arranjos federativos, indenizações por atraso de voos, eleições, orçamento, nomeações administrativas e tantas outras matérias.
E a resposta, como demonstrou a tese, reside menos na “vontade” do Tribunal e mais no modelo institucional que o Brasil escolheu em 1988.
O modelo brasileiro: duas Cortes em uma
A Constituição de 1988 atribuiu ao STF duas funções que, no constitucionalismo contemporâneo, raramente convivem na mesma instituição: (i) ser a cúpula do Poder Judiciário, última instância recursal do País; (ii) ser o tribunal constitucional, responsável pelo controle abstrato e concentrado da constitucionalidade.
Essa fusão é, do ponto de vista comparado, uma excepcionalidade brasileira. Países que, como o nosso, adotam controle abstrato (Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs; Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADCs; Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPFs,) criaram cortes constitucionais próprias, separadas dos tribunais que julgam o dia a dia da jurisdição comum.
Foi assim na Alemanha, Itália, Espanha, Portugal e França.
Em todos esses modelos, há uma lógica comum: os juízes constitucionais têm mandato (não vitaliciedade); a indicação é plural (Parlamento, Executivo, às vezes Judiciário ou sociedade civil); as competências são restritas ao controle de constitucionalidade, não ao julgamento de todas as causas do País; o tribunal constitucional está fora da estrutura do Poder Judiciário.
O propósito é claro: quando se trata de interpretar a Constituição — documento político por natureza —, a legitimidade democrática exige pluralidade de composição, mandato temporal e competência institucional delimitada.
O Brasil seguiu caminho oposto.
A singularidade brasileira: amplidão de competências e fragilidade de legitimidade democrática
A Constituinte de 1988 manteve em grande parte a estrutura de poder das Constituições republicanas anteriores. Preservou-se o STF como órgão do Judiciário, mas ampliaram-se enormemente suas competências constitucionais.
Hoje o Tribunal: recebe ações de controle concentrado propostas por uma lista extensa de legitimados (mais ampla do mundo); julga recursos extraordinários sobre praticamente qualquer área do direito; edita súmulas vinculantes; interfere — porque é provocado — em políticas públicas estruturantes; exerce papel crescente na regulação da comunicação digital, do processo eleitoral e das relações entre os Poderes.
Essa expansão não é fruto de voluntarismo da Corte. É consequência natural de três fatores estruturais: (i) competência constitucional excessivamente ampla; (ii) volume extraordinário de legitimados para provocar o Tribunal; (ii) desenho institucional que combina supremacia judicial com supremacia constitucional, sem instrumentos suficientes de legitimação democrática.
Essa combinação fez com que o STF se tornasse, na prática, o órgão mais poderoso da República, com capacidade real de interferir em decisões políticas de alta sensibilidade — sem que o modelo institucional lhe dê, simetricamente, os elementos de legitimidade democrática que caracterizam os tribunais constitucionais do restante do mundo.
O STF e o ativismo
É importante afirmar com clareza: o problema não é o STF agir. Em muitos momentos, especialmente quando há omissões estatais prolongadas, a Corte precisa agir para preservar a Constituição. Constituições carregadas de valores demandam tribunais comprometidos com sua concretização.
O ponto sensível não é o ativismo, mas o solo institucional sobre o qual esse ativismo é exercido.
Em uma sociedade hiperconectada, a Corte é pressionada por todos os lados: opinião pública, redes sociais, Parlamento, Executivo, Ministérios Públicos, governos estaduais, organizações civis. A cada conflito — seja sobre saúde, educação, segurança, eleições, discursos virtuais ou orçamento — o STF é provocado a dar uma resposta. E responde, porque é constitucionalmente obrigado a fazê-lo.
O problema é que responde sem ter sido desenhado para exercer esse protagonismo. Falta-lhe, institucionalmente: mandato fixo; pluralidade de fontes de indicação; distanciamento da estrutura judicial tradicional; filtro mais rigoroso de acesso ao controle abstrato; mecanismos robustos de diálogo institucional com Parlamento e Executivo.
Assim, a consequência não é um Tribunal “ativista”, mas um Tribunal excessivamente pressionado, a quem o desenho constitucional atribuiu poderes que não são acompanhados dos correspondentes mecanismos de legitimidade.
A solução não é trocar ministros – é reformar o modelo
O debate público costuma se perder em torno de nomes, decisões isoladas ou conjunturas políticas. Isso empobrece a discussão e obscurece o essencial. O que precisa ser enfrentado é a arquitetura constitucional.
O caminho mais equilibrado — e que dialoga diretamente com o que José Saraiva defende — seria a criação, por emenda constitucional, de um Tribunal Constitucional brasileiro, com: composição plural (indicações do Legislativo, do Executivo e, eventualmente, da sociedade civil qualificada); mandatos fixos e não renováveis; competências delimitadas ao controle abstrato e à resolução de conflitos constitucionais; instrumentos de diálogo institucional e transparência procedimental; preservação do STF como cúpula do Poder Judiciário, concentrando-se nos recursos extraordinários e na função jurisdicional típica.
Não se trata de reduzir a força do STF. Trata-se de colocar cada órgão no seu devido lugar: o Supremo como ápice do Judiciário; o Tribunal Constitucional como guardião da Constituição.
O equilíbrio como valor constitucional
O Brasil não precisa de um Supremo mais fraco, nem de um tribunal refém de maiorias políticas. Precisa, isto sim, de um arranjo institucional mais equilibrado, capaz de distribuir funções e responsabilidades de modo a fortalecer a democracia e preservar a Constituição.
Em síntese, o que está em jogo é reconhecer que o modelo atual — ao concentrar funções recursais e constitucionais na mesma instituição — tornou-se estruturalmente incompatível com a democracia plural e com a segurança jurídica que buscamos consolidar.
A experiência de países demonstra que a separação orgânica entre o Tribunal Constitucional e a cúpula do Poder Judiciário não fragiliza a jurisdição constitucional — ao contrário, fortalece-a ao dotá-la de legitimidade democrática, mandato temporal e competências claramente delimitadas.
Por que não pensar na utilização de um caminho institucional similar ao de outros países (Alemanha, Itália, Espanha, Portugal e França), com a criação, por emenda constitucional, de um Tribunal Constitucional brasileiro autônomo, com composição plural e mandato fixo, deixando ao STF o exercício exclusivo de sua vocação natural como Corte Suprema do Judiciário?
Tal medida poderia recolocar cada órgão no lugar institucional que melhor promove o equilíbrio entre Poderes, reduzir tensões sistêmicas e proteger, em última análise, a própria Constituição.