Em um país como o Brasil, onde aproximadamente 90% das empresas ativas são classificadas como micro ou pequenas, compreender os limites da responsabilidade patrimonial dos sócios é mais do que uma questão jurídica: é uma necessidade de sobrevivência no mundo dos negócios.
A ideia de que a constituição de uma pessoa jurídica serve como proteção contra dívidas pessoais é, em grande parte, verdadeira. Mas essa distinção tem limites. E esses limites, muitas vezes, são mal compreendidos por empresários, investidores e até por profissionais da área.
Como se dá a responsabilização patrimonial dos sócios, inclusive nas empresas individuais, e quais são os cenários em que o patrimônio pessoal pode ser atingido?
A análise desta pergunta pode ser feita a partir das três frentes em que essa responsabilização mais frequentemente se apresenta: a cível, a trabalhista e a tributária.
A premissa da separação patrimonial
A base do sistema jurídico brasileiro de sociedades empresariais repousa sobre a separação entre o patrimônio da empresa e o dos seus sócios.
Essa separação decorre do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, expressamente reconhecido no artigo 1.052 do Código Civil no caso das sociedades limitadas.
Ali se prevê que a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, ressalvada a solidariedade pela integralização do capital social.
Assim, em regra, dívidas contraídas pela empresa não podem ser cobradas diretamente dos sócios, salvo se restar caracterizada alguma hipótese legal de responsabilização.
É justamente nesse ponto que surge a figura da desconsideração da personalidade jurídica, que tem se tornado cada vez mais frequente em litígios judiciais, especialmente nas esferas cível, trabalhista e tributária.
A responsabilidade nas empresas individuais
O tema merece atenção redobrada no caso das empresas individuais, que se apresentam sob diferentes formas jurídicas:
- (i) o empresário individual,
- (ii) a EIRELI (que deixou de ser admitida para novas constituições com a Lei nº 14.195/2021),
- (iii) sociedade limitada unipessoal.
Ainda que haja apenas um sócio, em algumas dessas estruturas é possível manter a separação patrimonial.
A sociedade limitada unipessoal, por exemplo, goza das mesmas prerrogativas das sociedades pluripessoais, inclusive no tocante à limitação da responsabilidade.
Já o empresário individual, por outro lado, não se beneficia da autonomia patrimonial, sendo responsável de forma ilimitada pelas dívidas da empresa.
Seu patrimônio pessoal pode ser atingido a qualquer tempo, já que a empresa consiste em mera ficção, permitindo que a pessoa natural atue no mercado com as vantagens inerentes às pessoas jurídicas.
Inexiste, em tal hipótese, a distinção daquele que exerce a atividade (o empresário ou a pessoa jurídica).
A distinção entre essas figuras é essencial, pois muitos pequenos empreendedores operam como empresários individuais sem compreender que respondem com todos os seus bens por eventuais passivos do negócio.
A desconsideração da personalidade jurídica nas relações de natureza cível
Apesar da separação formal entre os patrimônios, o ordenamento jurídico permite, em hipóteses específicas, que se desconsidere a personalidade jurídica para alcançar os bens dos sócios.
Essa técnica jurídica tem fundamento no artigo 50 do Código Civil, e pode ser aplicada quando houver abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo (i) desvio de finalidade da pessoa jurídica (utilização para fins pessoais ou ilícitos) ou confusão patrimonial (ausência da separação de fato dos bens da empresa com os dos sócios);
A comprovação efetiva do abuso da personalidade jurídica é requisito imprescindível para a desconsideração, sendo insuficiente o mero obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados.
Significa dizer que, o simples inadimplemento da empresa, por si só, não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica.
É necessário demonstrar que a pessoa jurídica foi utilizada como instrumento de fraude ou que há confusão patrimonial relevante.
Até mesmo por isso, é que prevê expressamente o §4º, do art. 50, do CC, que a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos legais não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
Responsabilidade trabalhista: presunção
No âmbito do direito do trabalho, a lógica se inverte em certa medida. A Justiça do Trabalho, sensível à hipossuficiência do trabalhador e ao caráter alimentar dos créditos, adota com frequência a chamada “teoria menor da desconsideração”, baseada no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, aplicado por analogia; ao contrário da “teoria maior”, prevista no art. 50, acima.
Essa teoria (“menor”) dispensa a comprovação de fraude ou confusão patrimonial, permitindo a responsabilização dos sócios sempre que houver frustração da execução contra a empresa.
Em outras palavras: a simples inadimplência já autoriza, em muitos casos, o redirecionamento da execução para os bens dos sócios, sobretudo dos administradores.
Além disso, o sócio, ainda que não exerça o controle da empresa, pode responder solidariamente pelas verbas trabalhistas, mesmo sem participação ativa na fraude.
Responsabilidade tributária: limites mais rígidos
A responsabilização dos sócios no plano tributário possui regras mais rigorosas. De acordo com o artigo 135, inciso III, do Código Tributário Nacional, só podem ser responsabilizados pessoalmente os sócios ou administradores que tenham agido com excesso de poderes, infração à lei, ao contrato social ou estatuto.
O mero inadimplemento de obrigação tributária pela empresa não enseja, por si só, a responsabilização do sócio.
É preciso haver culpa ou dolo na condução da atividade empresarial, como omissão dolosa no recolhimento de tributos, simulação de atos societários ou fraude à execução fiscal, bem como encerramento irregular das atividades.
A responsabilidade não é automática — mas é real
Como se vê, a responsabilidade patrimonial dos sócios não é automática, mas é possível e concreta. Embora a regra geral seja a separação entre os patrimônios, há múltiplas situações em que essa distinção pode ruir — por abuso, omissão, gestão temerária ou simplesmente por não observar as formalidades legais.
O cenário é especialmente sensível para pequenas empresas familiares, sociedades entre amigos e empreendedores individuais, onde a informalidade e a confusão entre bens pessoais e da empresa ainda são recorrentes.
Ter um contrato social bem elaborado, registrar corretamente os atos societários, manter a separação de contas e zelar pela regularidade contábil e fiscal da empresa são medidas simples, mas eficazes para evitar que o patrimônio pessoal seja alcançado por dívidas da sociedade.
A responsabilidade limitada é uma garantia jurídica relevante, mas, como toda garantia, não é absoluta.