10 anos da tragédia no Rio Doce. Por Leonardo Merçon/ Instituto Últimos Refúgios
10 anos da tragédia no Rio Doce. Por Leonardo Merçon/ Instituto Últimos Refúgios

Dez anos se passaram desde o crime em Mariana e a tragédia que se alastrou pelo Rio Doce, de Minas Gerais à sua foz, no Espírito Santo. Marcas deixadas na natureza e nas pessoas ainda estão abertas. 

Neste relato pessoal, compartilho o que vivi ao acompanhar a lama de rejeitos pela bacia do Rio Doce, os impactos irreversíveis, as ameaças que sofri, e a importância de nunca esquecer para não deixar que se repita.

10 anos da tragédia no Rio Doce. Por Leonardo Merçon/ Instituto Últimos Refúgios
10 anos da tragédia no Rio Doce. Por Leonardo Merçon/ Instituto Últimos Refúgios

As imagens me arrasaram

Era novembro de 2015. Um mês que parecia comum na minha vida de ambientalista. Havia acabado de protocolar um projeto em um fundo relacionado à água, aqui no Espírito Santo, para criarmos materiais culturais para a valorização das bacias hidrográficas do ES e seus comitês. Até que veio a notícia: uma barragem havia se rompido em Mariana (MG), liberando uma onda de rejeitos de mineração que seguia rumo ao Espírito Santo. 

Diante da tragédia, entendi que precisava estar lá, mesmo ainda não entendendo a magnitude do ocorrido, mas seria algo importante de estar no novo projeto. Peguei minhas economias (dinheiro reservado para o aluguel) e fui. Eu e alguns colegas seguimos o curso do rio, ainda sem saber ao certo o que encontrar. A lama avançava. A informação era escassa. O governo dizia que não chegaria tão longe. Mas a realidade era outra.

Subindo o rio

Após aguardarmos por dois dias a chegada da “lama” na divisa de MG e ES, e em certo momento, resolvemos subir o Rio Doce, pois as informações que nos chegavam eram muito limitadas. 

Passamos por cidades, fotografamos a vida que ainda resistia nas margens antes da chegada dos rejeitos. Vimos peixes, aves, matas ciliares… as poucas que ainda resistiam às ações destruidoras e inconsequentes da ganância humana. Um rastro humano de degradação anterior à tragédia.

Até que, em uma ponte, nas proximidades de Governador Valadares/MG, avistamos o que não queríamos ver. A lama, espessa, tóxica, avançava. Peixes pulavam para fora da água, camarões agonizavam nas margens, caramujos tentavam escapar da corrente marrom para morrer nas pedras escaldantes pelo sol. Era como se o rio estivesse tentando gritar por socorro.

Na época, na TV, diziam que os peixes estavam morrendo asfixiados. Mas não era isso. Eles estavam sendo envenenados por uma mistura química invisível. Era perceptível pela forma com a que tentavam sair da água desesperadamente. E nós testemunhamos isso antes de qualquer confirmação oficial.

As imagens que fizeram a diferença

As fotos que fizemos começaram a circular nas redes sociais. Milhões de pessoas compartilharam. A imprensa começou a nos procurar. 

Também compartilhei tudo com o governo do Espírito Santo e o Ministério Público. Não havia intenção de atacar. Havia uma urgência de colaborar. As pessoas precisavam saber. Precisavam se proteger. Os animais também. Era preciso alertar.

Mas quanto mais a verdade se espalhava, mais cresciam as ameaças. Sofremos intimidações. Tive que suspender um documentário que estávamos produzindo. Passamos a doar nossas imagens para outros jornalistas e organizações que pudessem contar a história. Mas o que ficou foi o sentimento de que pagamos um preço alto por tentar fazer o certo.

A dor que corre com o rio

Voltei ao rio outras vezes. E cada retorno era mais doloroso. Pessoas choravam. Contavam como perderam a relação com o rio que sempre esteve presente em suas vidas. Falavam do medo, das doenças, das promessas não cumpridas. Crianças recebendo água contaminada nas escolas. Aumento de até 1000% nos casos de enfermidades em certas regiões.

Vi pescadores que já não tinham o que pescar. Vi o leito do rio se transformar em um deserto de lama. E vi, aos poucos, algumas espécies tentando resistir, vindas dos afluentes que não haviam sido afetados. Mas o estrago estava feito.

O Brasil ainda não aprendeu

Dez anos se passaram. E parece que ainda não aprendemos. Seguimos tratando a natureza como descartável. Seguimos negando a crise climática. Seguimos desmatando. Seguimos poluindo. E seguimos permitindo que tragédias anunciadas aconteçam.

Às vésperas da COP 30, é impossível não fazer esse paralelo. Porque o que vi no Rio Doce foi um retrato de como lidamos (ou deixamos de lidar), com as questões importantes relacionadas ao meio ambiente. Um reflexo de nossa falta de empatia, de responsabilidade e de planejamento.

A forma em como estamos lidando com a crise climática, por exemplo, tem paralelos com a que lidamos com a tragédia do rio doce. Não é mais um alerta distante. Ela já está entre nós, moldando a forma como vivemos, produzimos e sobrevivemos. 

O que antes era tratado como uma previsão para o futuro, hoje se manifesta em enchentes violentas, secas extremas, colheitas fracassadas, cidades submersas e incêndios que devoram biomas inteiros. A velocidade com que essas transformações estão ocorrendo supera, de longe, a capacidade de adaptação que estamos apresentando hoje em dia. 

A natureza seguirá seu curso, como sempre fez, com seus altos e baixos. Porém, nós é que estamos ficando com o tempo contado. Enquanto líderes globais discursam, sem ações muito concretas (ao menos não o suficiente), eventos extremos batem à nossa porta. 

Enfrentar a crise climática exige coragem política, justiça social, restauração ambiental e uma mudança profunda na nossa forma de habitar o planeta. Adiar essa discussão é condenar o nosso futuro como sociedade minimamente confortável.

A memória é um ato de resistência

Neste aniversário sombrio, não quero celebrar nada. Quero apenas lembrar mais uma vez, como fazemos todos os anos. Para que repensemos nossa forma de lidar com a natureza.

Quero que minhas imagens sirvam de memória viva. Que o que eu vi e registrei ajude a impedir que outros rios, outras comunidades, outras vidas, sejam arrastadas por novas ondas de lama. Sejam elas físicas ou simbólicas.

Porque a natureza não é um recurso. Nós fazemos parte dela. E enquanto tratarmos o planeta como descartável, estamos descartando também o nosso futuro.

Encerro com um convite

Compartilhe este texto com alguém que precisa lembrar dessa história. Sua interação é fundamental para manter viva a minha chama da conservação e mostrar ao mundo a importância de proteger nossa biodiversidade.

Espero que tenham gostado desta história. Te vejo na próxima aventura!

Leonardo Merçon

Fotógrafo de Natureza, Cinegrafista e Produtor Cultural

Fundador e diretor voluntário do Instituto Últimos Refúgios, OSC ambiental/cultural sem fins lucrativos, que atua desde 2011 na divulgação e sensibilização ambiental, estimulando o diálogo entre sociedade, organizações ambientais, instituições privadas e governamentais. Fotógrafo de natureza, documentarista desde 2004, Merçon é focado na proteção da natureza, com Mestrado em Conservação da Biodiversidade e Desenvolvimento sustentável pela ESCAS/Instituto IPÊ. Também formado em Design Gráfico pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Estudou fotografia voltada para publicações na Academia de Mídias e Artes, na Alemanha. O colunista acredita e trabalha em atividades de sensibilização ambiental (em especial com crianças) e fomento do turismo relacionado à natureza. Leonardo Merçon também tem dezenas de livros impressos e documentários em vídeo publicados. Realiza trabalhos ajudando a contar histórias por meio de imagens em mídias nacionais e internacionais, como a BBC de Londres e National Geographic Brasil, dentre outras.

Fundador e diretor voluntário do Instituto Últimos Refúgios, OSC ambiental/cultural sem fins lucrativos, que atua desde 2011 na divulgação e sensibilização ambiental, estimulando o diálogo entre sociedade, organizações ambientais, instituições privadas e governamentais. Fotógrafo de natureza, documentarista desde 2004, Merçon é focado na proteção da natureza, com Mestrado em Conservação da Biodiversidade e Desenvolvimento sustentável pela ESCAS/Instituto IPÊ. Também formado em Design Gráfico pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Estudou fotografia voltada para publicações na Academia de Mídias e Artes, na Alemanha. O colunista acredita e trabalha em atividades de sensibilização ambiental (em especial com crianças) e fomento do turismo relacionado à natureza. Leonardo Merçon também tem dezenas de livros impressos e documentários em vídeo publicados. Realiza trabalhos ajudando a contar histórias por meio de imagens em mídias nacionais e internacionais, como a BBC de Londres e National Geographic Brasil, dentre outras.