
Como fotógrafo de natureza e produtor cultural que há 20 anos busco sensibilizar pessoas pela imagem, pela música, pelo vídeo, festivais e pela arte de contar histórias, uma pergunta ainda me persegue: por que ainda insistem em separar cultura e meio ambiente?
Entendo que as pessoas envolvidas com a arte contemporânea tenham outras formas de desenvolver seus trabalhos, porém, arte e cultura não se restringe a uma única vertente.
A cada nova proposta, exposição ou projeto que envolva o meio ambiente e educação ambiental com linguagem artística, não são raras as vezes em que ouço que “isso aqui não é cultura, não é arte, é meio ambiente”. Como se o fato de utilizar a natureza como temática automaticamente tirasse do meu trabalho o seu valor artístico. Me dizem que o que eu faço “não é arte”, porque é bonito e tem natureza demais. “Arte tem que chocar!”, dizem.
O mais curioso é que essa crítica vem, muitas vezes, de dentro do próprio setor cultural. De gestores, avaliadores, artistas e acadêmicos que se negam a reconhecer a natureza como tema legítimo de expressão artística, como se a cultura estivesse apartada da terra, da floresta, dos rios e de tudo aquilo que nos formou como sociedade.
Atentando para o fato de que do outro lado, também já ouvi que “não é meio ambiente, porque tem cultura, é artístico demais”.
Quando a cultura se desconecta da vida
A arte é utilizada para expressar ideias, emoções, conflitos e sonhos. É irônico perceber que o campo da arte contemporânea (que se diz revolucionário, provocador e crítico) seja o mesmo que, com frequência, reproduz uma visão limitada do que é cultura.
Como exemplo, é possível apresentar temas para as artes como política, de classe, de gênero ou de raça, que são rapidamente acolhidos como expressão legítima, como devem ser! Mas se a arte fala de natureza, de floresta, de biodiversidade ou de conservação, muitas vezes é colocado de lado como “educação ambiental” ou “ciência”.
Por que aceitar que um projeto sobre temas sociais é cultura… como deve ser, mas recusar um projeto que denuncia a destruição de ecossistemas como sendo “só meio ambiente”? Será que esquecemos que a própria cultura é um produto da relação do ser humano com o meio onde vive?
A cultura está nos temas, não nos formatos
A conexão entre natureza e cultura vem desde as primeiras manifestações artísticas da humanidade. As pinturas rupestres não nasceram nas galerias de arte, mas em cavernas, nas entranhas da terra. O canto, a dança, a escultura, a literatura, tudo foi profundamente influenciado pelas paisagens, pelos animais, pelas florestas e pelas forças naturais.
A natureza é tema de arte desde antes da palavra “arte” existir, com nossos ancestrais. Está também está nos poemas de Gonçalves Dias, nas telas de Van Gogh, nas pinceladas de Monet. Está nas fotografias de Sebastião Salgado, inclusive na série “Gênesis”, dedicada inteiramente às paisagens naturais, aos animais e aos povos da floresta. Está também nas minhas produções culturais com temáticas ambientais, feitas com paixão e propósito.
A arte como ponte entre mundos
Ao meu ver, meu trabalho é, sim, artístico e cultural. Quando transformo uma fotografia em um livro, uma exposição, documentário ou um festival, estou criando cultura a partir da natureza. Estou atingindo as pessoas não com dados, mas com histórias visuais, com emoção, com estética, com a interação com o patrimônio cultural natural brasileiro e com reflexão. Não há nada meramente técnico ou científico nisso. Há TAMBÉM arte.
A produção cultural que usa a natureza como tema não é um mero panfleto ambiental, é uma forma de contar histórias que está sendo silenciadas. De dar voz a paisagens ameaçadas, a espécies invisibilizadas, a territórios que nos sustentam. É arte que propõe uma nova ética. É cultura que amplia o olhar da sociedade.
A natureza está na essência da cultura brasileira
Cultura é o que comemos, onde moramos, como falamos, como rezamos, como lutamos, como cuidamos ou destruímos o que está à nossa volta. A natureza está presente em cada uma dessas dimensões. E não é possível separar natureza e cultura sem amputar uma grande parte do que somos.
Essa conexão entre natureza e cultura não é apenas simbólica ou poética. Ela está reconhecida na legislação brasileira. O próprio Plano Nacional de Cultura (Lei nº 12.343/2010) estabelece como princípios a responsabilidade socioambiental e a valorização da cultura como vetor de desenvolvimento sustentável. Entre seus objetivos está o de estimular a sustentabilidade socioambiental e valorizar as criações artísticas em toda sua diversidade.
Além disso, a Constituição Federal, no artigo 216, define como patrimônio cultural brasileiro não só as criações artísticas, mas também os sítios de valor ecológico, os saberes populares e as manifestações que integram a memória e identidade dos diferentes grupos sociais.
Ou seja: natureza é cultura, por lei, por história, por essência. Não existe cultura brasileira sem Mata Atlântica, sem Cerrado, sem Amazônia, sem Pantanal, sem Pampas, sem Caatinga, sem o mar, sem os rios, sem manguezais, sem montanhas, sem florestas. Não existe identidade sem território.
Precisamos ampliar os horizontes da cultura
É hora de deixarmos para trás essa visão reducionista que coloca a arte em caixinhas e o meio ambiente como apêndice didático. Projetos culturais que tratam da natureza são tão válidos quanto qualquer outro. Eles nos reconectam com o essencial. Eles nos lembram de onde viemos. Eles podem e devem ser apoiados por políticas públicas de cultura.
O artista passa sua mensagem relacionada às questões importantes para sua vida, fala sobre temas que julga importantes para a sociedade e os desafios contemporâneos. Em meio a uma crise climática que ameaça nossa própria sobrevivência, a conservação da natureza está entre alguns dos temas mais importantes da atualidade a serem discutidos por nossa sociedade. E para mim, esse é UM DOS propósitos da arte.
E, como artista, fotógrafo, produtor cultural e ambientalista, sigo tentando construir pontes por meio da cultura, mas estou cansado de ter que defender que sensibilizar pessoas por meio da beleza da natureza é tão arte quanto qualquer galeria de paredes brancas.
Acredito que a cultura que ignora a natureza está incompleta. A arte não precisa pedir licença para falar sobre o que é essencial. E a conservação da natureza é essencial. Que nossa sociedade aprenda a enxergar isso, antes que reste apenas o silêncio do que sobrar.