Em tempos em que o racionalismo extremo domina o debate público, cresce a tentação de tratar a fé como um resquício medieval, incompatível com o progresso e com a liberdade individual. Para muitos, razão e fé estariam em campos opostos — a primeira como libertadora, a segunda como opressora. No entanto, essa dicotomia simplista desconsidera o papel profundo e estruturante que a fé exerceu na construção dos valores que sustentam uma sociedade livre. A razão não anula a importância da fé. Pelo contrário, ambas podem — e devem — caminhar juntas na defesa da liberdade, da responsabilidade individual e de uma ordem baseada no Estado de Direito.
Ao longo da história, a fé religiosa — especialmente nas tradições judaico-cristãs — foi decisiva na formação dos códigos morais que deram sustentação às sociedades livres. Dos Dez Mandamentos, que estabeleceram limites éticos universais, à Reforma Protestante, que incentivou a leitura individual da Bíblia e reforçou o princípio da consciência pessoal, a fé moldou comportamentos e valores compatíveis com a autonomia e a autodisciplina. A racionalidade é essencial para o avanço tecnológico, o progresso científico e a formulação de boas políticas públicas, mas não é suficiente, por si só, para sustentar uma sociedade moralmente coesa. A liberdade exige mais do que leis e instituições: requer indivíduos capazes de distinguir o certo do errado, mesmo na ausência de vigilância externa. Como observou Alexis de Tocqueville ao analisar a sociedade americana no século XIX, em A Democracia na América, a religião cumpria ali um papel central na formação moral dos cidadãos, servindo como freio aos abusos do poder e da maioria.
Fé e Liberalismo Clássico
É precisamente nesse ponto que a fé e o liberalismo clássico se encontram. Ambos valorizam a responsabilidade individual. A fé autêntica não infantiliza o indivíduo nem o exime de escolhas; ao contrário, ela reforça a ideia de que cada pessoa é responsável por seus atos diante de Deus, da sociedade e de si mesma. Essa concepção se alinha perfeitamente com os princípios do Liberalismo — liberdade, responsabilidade e propriedade —, pois sustenta a liberdade como um bem que só pode ser desfrutado com maturidade moral.
A fé também desempenhou um papel importante no desenvolvimento da economia de mercado. Sociedades de forte tradição religiosa — como as marcadas pelo protestantismo reformado — desenvolveram uma ética voltada ao trabalho, à poupança e ao cumprimento de contratos. Essas virtudes, longe de serem “irracionais”, foram decisivas para o surgimento de ambientes econômicos dinâmicos e baseados na confiança. Como mostrou Max Weber, ainda que com ressalvas, a relação entre fé e capitalismo é mais profunda do que se costuma admitir nos círculos secularizados.
A Separação entre Igreja e Estado
Importa destacar, porém, que defender o papel público da fé não é o mesmo que defender um Estado confessional. Pelo contrário: a separação entre Igreja e Estado é uma conquista liberal que deve ser preservada. Um Estado de Direito liberal deve garantir a liberdade religiosa como extensão da liberdade de consciência, sem promover crenças nem suprimi-las. Onde o Estado tentou sufocar a fé — como nos regimes totalitários comunistas — instalou-se um culto estatal que substituiu Deus pelo Partido, com trágicas consequências para a dignidade humana.
É um erro, portanto, enxergar fé e razão como inimigas. Ambas têm papéis distintos, mas complementares. A razão nos ajuda a compreender o mundo e a construir as instituições da liberdade. A fé, por sua vez, fornece a bússola moral que orienta o uso dessa liberdade para fins nobres. Grandes pensadores e cientistas da história — de Newton a Mendel — não viram contradição entre ciência e fé. Do mesmo modo, Edmund Burke, um dos pais do pensamento conservador-liberal, via na religião um suporte necessário à ordem espontânea que garante as liberdades civis.
Negar a importância da fé no mundo contemporâneo é correr o risco de amputar um dos pilares invisíveis que sustentam a liberdade que tanto valorizamos. É verdade que a razão constrói pontes, mas talvez seja a fé que nos ensine porque vale a pena atravessá-las.
Ao reconhecermos o valor da fé e razão, não estamos renunciando à razão. Estamos apenas admitindo que a liberdade, para ser plena e duradoura, precisa de fundamentos mais profundos do que a lógica fria ou o cálculo utilitarista. Como afirmou Hayek, “a liberdade depende de instituições e valores que a razão sozinha não poderia criar”. Entre esses valores, a fé — em sua pluralidade e liberdade — tem um lugar de destaque.