Make Orwell Fiction Again

Imagine caminhar pela rua em uma tarde comum. De repente, homens mascarados se aproximam. Não dizem quem são, não mostram qualquer documento. Apenas o empurram para dentro de um veículo, que arranca em silêncio. Você não sabe para onde vai. O destino é um centro de detenção superlotado, com corpos amontoados, olhares desesperados e o som constante de portas metálicas se fechando. Você não foi julgado, sequer acusado. Apenas levado. 

Agora, imagine estar ao volante, retornando para casa depois de um dia de trabalho. Um bloqueio repentino. O vidro estilhaça com o impacto de disparos. Braços o puxam para fora, empurrando seu rosto contra o asfalto. O carro, antes refúgio, agora é escombro. Seus gritos não encontram resposta, apenas a frieza de olhos ocultos atrás de máscaras.

Leve seu pensamento para sua residência. O espaço mais íntimo do indivíduo, a última fronteira de segurança. É noite, todos dormem. O som da porta arrombada corta o silêncio. Homens encapuzados o arrancam da cama, sem tempo de vestir-se. Seus filhos, em choque, são expulsos nus para a rua, separados dos pais e levados por agentes mascarados. Em poucos minutos, você perde não apenas a liberdade, mas também todas as suas economias. Confiscadas, como se jamais tivessem sido suas. O lar se torna ruína, e a memória de sua dignidade, um sussurro distante

Por fim, visualize uma sala de aula. O quadro cheio de anotações, o burburinho dos colegas, o professor explicando uma lição. A porta se abre com violência. Os mesmos mascarados entram. Escolhem um de seus colegas ao acaso, ou talvez o próprio mestre. Retiram-no como se fosse apenas um objeto. O que resta é o silêncio sufocante, o medo partilhado, a certeza de que ninguém está a salvo, nem mesmo em um espaço dedicado ao aprendizado. 

Infelizmente, essas imagens não são ficção distante, não são exemplos extraídos de alguma ditadura do Oriente e nem saíram da obra seminal de George Orwell1. Elas aconteceram e têm acontecido na nação em que deveria ser o farol da liberdade do ocidente. Todos os relatos acima se materializaram no atual governo norte-americano

Ações do ICE nos Estados Unidos

Agentes encapuzados do ICE (U.S. Immigration and Customs Enforcement) apreendem pessoas na rua, no trabalho, dentro do carro ou de suas próprias residências na calada da noite, sem que aqueles sequestrados saibam se de fato estão sendo abordados por autoridades públicas, sem que saibam por qual motivo estão sendo apreendidos, ou mesmo sem que possam se despedir ou deixar aqueles que deles dependem aos cuidados de alguém de confiança.

As mencionadas arbitrariedades representam o triunfo da força sobre o Rule of Law, da violência sobre a razão, do anonimato sobre a responsabilidade. O Rule of Law, ou princípio do Estado de Direito, é o que separa a civilização do arbítrio que domina os cenários descritos no presente texto, aqueles em que indivíduos mascarados, sem identificação ou controle, exercem poder sobre corpos e vidas. 

O Rule of Law exige que todos, inclusive o próprio Estado, se submeta à lei, a qual deve ser pública, previsível e aplicada por autoridades legítimas, não por forças anônimas. Quando o Rule of Law é violado, a justiça se dissolve, a liberdade torna-se privilégio e o medo passa a ser o método de governo. É exatamente nesse vazio, no qual a lei deixa de proteger o indivíduo para servir ao poder, que a ficção de Orwell deixa de ser metáfora e se converte em realidade.

Liberalismo Clássico e Migração

Ainda, sobre a liberdade dos fluxos migratórios em si, tanto sob um aspecto ético como econômico, Ludwig von Mises, já no século passado, considerava as restrições ao livre fluxo migratório incompatíveis com os princípios do liberalismo clássico. Para Mises, a liberdade de deslocamento é um corolário da liberdade econômica, pois somente em um mundo onde indivíduos possam circular livremente, é possível concretizar a cooperação internacional e a prosperidade mútua. Ao erigir barreiras artificiais à migração, o Estado, além de naturalizar a vigilância sobre corpos e trajetórias humanas, também, como é característico de intervenções estatais, origina repercussões econômicas negativas.

Todo regime autoritário nasce não de um golpe, mas de uma sucessão de pequenas concessões ao medo. Primeiro, aceitam-se as máscaras “para a segurança de todos”, depois, o silêncio “para não atrapalhar as investigações” e, por fim, o desaparecimento “porque algo deve ter feito”. 

É desse modo que o terror se normaliza, o arbítrio se institucionaliza e a exceção se torna regra. A distopia não chega com tanques, mas com justificativas. E quando o homem comum passa a temer o Estado mais do que confia nele, já não há fronteira entre a lei e o poder, entre o cidadão e o súdito. O mundo já conheceu regimes que fizeram da máscara e do silêncio armas cotidianas. No presente, entre democracias fragilizadas e Estados que naturalizam o arbítrio, esses cenários voltam a se insinuar. E o futuro? O futuro será aquilo que aceitarmos calados, ou aquilo que tivermos coragem de defender. Entre a distopia orwelliana e a liberdade, a diferença está no quanto cada um de nós renunciará à própria liberdade.

1 ORWELL, George. 1984. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

André Paris

Palestrante, Consultor em Governança e Inteligência Artificial, Privacidade de Dados e Compliance. Entusiasta da busca por um ambiente de negócios mais ético e transparente.

Palestrante, Consultor em Governança e Inteligência Artificial, Privacidade de Dados e Compliance. Entusiasta da busca por um ambiente de negócios mais ético e transparente.