Opinião

Paisagem afetiva da Praça Costa Pereira: patrimônio cultural capixaba

No coração de Vitória, a praça é um lugar de memória, onde passado e presente narram a história capixaba

Praça Costa Pereira
Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória. Foto: Thiago Soares/Folha Vitória

*Artigo escrito por Kárita de Souza Nunes, arquiteta e urbanista, membro da Comissão de Patrimônio do CAU/ES.

No Dia Nacional do Patrimônio Cultural, é impossível não lembrar da Praça Costa Pereira. Mais do que um logradouro no Centro de Vitória, é um lugar de memória, onde passado e presente narram a história capixaba. Ela é testemunha viva das camadas de transformação urbana que moldaram a cidade.

Para além das construções, guarda marcas de tempos sobrepostos, de memórias individuais e coletivas que, juntas, formam uma paisagem cultural emblemática.

A você que lê estas linhas, é importante ressaltar a história que a praça quer contar, que é nossa:

De antigo ancoradouro de pescadores na Prainha, no século XVIII, ladeado pela Igreja de Nª Sª da Conceição, entre religião e trabalho, ali no Largo, o cotidiano popular se desenrolava ao ritmo das marés.

Foi convertida em berço do grande centro artístico que se consolidou no final do séc. XIX e início do séc. XX, abrigando estilos arquitetônicos ecléticos, inspirados na arquitetura das cidades europeias. Foi um período que trouxe à praça casarios, os primeiros teatros (Carlos Gomes e Glória), comércios e o Hotel Imperial.

A Praça também foi palco de modernização em meados do séc. XX, com o primeiro edifício “arranha-céu” e com elevador, o Antenor Guimarães, bem como o primeiro centro comercial de café na América Latina, antigo Palácio do Café (o atual Michelini), o Getúlio Vargas (antigo IAPI), o Álvares Cabral, entre outros.

A praça carrega em sua paisagem as marcas de aterros, construções, reformas e demolições que traduzem as ambições e contradições da sociedade, um verdadeiro mosaico de tempos e usos.

Não podemos nos esquecer dos eixos visuais para a Catedral Metropolitana, datada de 1551, para a paisagem natural do Maciço Central, da Baía de Vitória e da atividade portuária.

Sobretudo, o lugar é um coração pulsante que conecta diversos caminhos: a cidade baixa à cidade alta através da escadaria São Diogo (1942), e pelo menos a oito ruas de forma direta. Oito também é o número de monumentos de diferentes datas localizados na praça e por onde quer que se ande, um deles se revela.

Contudo, ela também é o espelho incômodo das nossas omissões. Entre seus bancos sinuosos e sombras de árvores centenárias, convivem a beleza do patrimônio e o descaso público; a vida comunitária e a violência silenciosa. É um território onde tranquilidade e tensão não se anulam, apenas coexistem.

O Teatro Carlos Gomes fechado há anos, o edifício Getúlio Vargas condenado e vazio, o lixo e a degradação urbana são feridas abertas no coração do Centro. Feridas que não nasceram ontem: são fruto de décadas de políticas urbanas míopes, que trocaram espaços públicos vivos por projetos elitistas e enclausurados. A praça resiste, mas ao custo do esforço coletivo das pessoas que se recusam a vê-la minguar.

Kárita de Souza Nunes, arquiteta e urbanista
Kárita de Souza Nunes é arquiteta e urbanista. Foto: Acervo pessoal

E ainda assim, há algo na Costa Pereira que escapa a essa lógica. É a capacidade de reunir gente, no carnaval ou fora dele. Gente que se detém para apreciar a arte de rua, ouvir o som dos passarinhos, folhear um livro, sentir o aroma de comidas típicas, tomar um café, trocar duas palavras com um desconhecido. Gente que, mesmo sem saber, reafirma diariamente o sentido de pertencimento.

É nesse encontro e nessa troca que o patrimônio deixa de ser apenas herança e se transforma em presente vivo. Tudo isso compõe a paisagem afetiva do lugar.

Que este 17 de agosto nos lembre que patrimônio cultural não se celebra apenas: se protege, se vive, se reivindica.