Foto: EGBERTO RAS/ENQUADRAR/ESTADÃO CONTEÚDO
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operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, deflagrada nesta terça-feira, 28, nos Complexos do Alemão e da Penha, é considerada uma estratégia de alto risco e ineficaz no combate às facções criminosas, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão. A ação terminou com 64 mortos, incluindo quatro policiais.

Cerca de 2,5 mil policiais civis e militares participaram da ofensiva contra o Comando Vermelho (CV). Pelo menos 87 escolas tiveram as atividades afetadas, impactando 29 mil alunos. Houve pânico nas comunidades e grandes vias bloqueadas.

Ao todo, ao menos 81 suspeitos foram presos e 75 fuzis, apreendidos, segundo o último balanço do governo. O CV reagiu à ofensiva das autoridades e lançou bombas por meio de drones, o que transformou a região em um cenário de guerra.

O governador Cláudio Castro cobrou outras esferas de poder. “Não temos o auxílio nem de blindados, nem de nenhum agente das forças federais, nem de segurança, nem de defesa. A gente sozinho nessa luta, estamos fazendo a maior operação da história do Rio”, afirmou.

Questionado se pediu ajuda federal para a operação, Castro disse que não foi solicitada “desta vez” porque já houve três negativas de ajuda. O Ministério da Justiça disse que tem oferecido suporte contínuo ao Executivo fluminense.

Foto: EGBERTO RAS/ENQUADRAR/ESTADÃO CONTEÚDO

O secretário da Segurança Pública do Rio de Janeiro, Victor Santos, descreveu a situação em entrevista à TV Globo, como um “estado de guerra”. “São aproximadamente 9 milhões de metros quadrados de desordem”, disse Victor Santos. “Criminosos dominaram essa região.”

Após as críticas de Castro, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, afirmou que a segurança pública nos Estados é responsabilidade dos governadores e que o combate à criminalidade “se faz com planejamento, inteligência e coordenação”.

“Essa operação é uma lambança operacional, porque ela não atende aos requisitos táticos operacionais que as próprias polícias Militar e Civil desenharam em seus protocolos”, afirma ao Estadão a pesquisadora Jacqueline Muniz, do departamento de segurança pública da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Segundo ela, o Rio de Janeiro tem três protocolos de operações policiais, desenvolvidos e validados em 2018, que atendem a pedidos feitos na época pelo Ministério Público do Estado para redução da letalidade policial.

A pesquisadora relembra ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, a chamada ADPF das Favelas, para definir parâmetros técnicos para ações policiais no Rio.

“Se as polícias Militar e Civil tivessem seguido, no seu planejamento, as exigências dos protocolos de atuação, com certeza não teria o barateamento da vida do policial, do cidadão e dos próprios criminosos, que são um recurso poderosíssimo no desbaratamento de economia política criminosa”, diz ela.

Segundo pesquisadores, ainda que com dezenas de prisões, a operação desta terça resulta em efeitos colaterais arriscados para moradores de diferentes regiões, com fechamento de escolas e até a possibilidade de inocentes serem feridos ou mortos em meio a trocas de tiros.

Trata-se de um tipo de atuação totalmente distinto do que se viu recentemente com a Carbono Oculto, que mirou em São Paulo um esquema ligado ao Primeiro Comando da Capital (PCC) para adulteração de combustíveis e lavagem de dinheiro.

No Rio, o foco maior era outro: combater o controle territorial pelo crime organizado, mas pesquisadores questionam a efetividade dessa estratégia. “A apreensão de fuzis não reduz a capacidade coercitiva e de controle territorial do crime. Ao contrário, ele (o crime) rapidamente se redimensiona. É um prejuízo pontual. É importante, mas não substitui nem paga as vidas perdidas”, afirma Jacqueline.

A ação, que também teve apoio do Ministério Público, foi deflagrada a partir de mais de um ano de investigação e mandados de busca e apreensão e de prisão obtidos pela Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE).

Agentes do Comando de Operações Especiais e das unidades operacionais da Polícia Militar da capital fluminense e da região metropolitana participam das ações.

‘Tragédia sob todos os enfoques’

Para Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz, a operação “é uma tragédia sob todos os enfoques”. Segundo ela, trata-se de um tipo de atuação que aparentemente não afeta os chamados elos da cadeia produtiva da droga.

“Ataca os locais onde o crime organizado domina territorialmente, mas não descapitaliza o crime organizado e não é capaz de romper com essa cadeia”, diz. Hoje, o quilo de cocaína comprada por U$ 1 mil de países vizinhos como Peru e Colômbia chega a U$ 60 mil na Europa.

Foto: JOSE LUCENA/THENEWS2/ESTADÃO CONTEÚDO

“É uma lógica que repete mais do mesmo: operações policiais que vitimam dezenas de inocentes, que geram fechamento de escolas e de unidades de saúde, (afetando) a comunidade local, as crianças”, lista a pesquisadora. “Ainda que seja preciso pensar em estratégias para enfrentar o domínio territorial do tráfico, esse tipo de operação já tem se mostrado ineficiente.”

Carolina afirma que a operação também preocupa por mostrar a dimensão do poderio bélico no Rio. “A quantidade de trocas de tiro com armas de uso militar, com uso de granada, mostra a gravidade da situação”, afirma.

A pesquisadora defende que, antes de operações dessa natureza, seja feito um trabalho profundo de inteligência e investigação policial para mapear os fluxos nacionais e internacionais das armas. “Precisa fortalecer as articulações entre as polícias estaduais e a Federal, fortalecer o centro de rastreamento da PF”, exemplifica.

“Vemos cada vez mais facções como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital adquirindo armamento de grosso calibre, armamento de ponta, para empregar para suas atividades criminosas”, afirma Leonardo Silva, pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Segundo ele, chama atenção também o uso de drones com capacidade para lançar granadas e material explosivo. “Não à toa, no Rio de Janeiro, nos últimos anos, se observa a apreensão de equipamentos antidrone, justamente de facções tentando se proteger do ataque de outras facções por meio de drones.”

‘Não mudou em nada o status dos domínios armados no Rio de Janeiro’

Especialistas têm discutido, nos últimos anos, a crescente demanda por reforço da União às ações de segurança pública, considerada um dos principais problemas na visão da população. Entre as possibilidades, estão o apoio financeiro e a articulação das forças de segurança locais e federais.

Pesquisadores, porém, criticam a fala do governador de que o Rio enfrenta o crime organizado “sozinho”. “Se você quer a presença do Exército, tem de ter planejamento conjunto. Não se pode tratar as Forças Armadas como Uber que você pede na esquina”, afirma Jacqueline.

A pesquisadora destaca que a operação, além de tudo, inviabilizou o policiamento da maior parte da região metropolitana e a circulação em várias regiões, incluindo as vias expressas.

Segundo ela, informações preliminares indicam que a maioria dos 2,5 mil policiais envolvidos na operação não são de unidades especiais, o que mostra certo grau de improvisação na incursão. “Foi uma ação publicitária”, critica Jacqueline.

A pesquisadora afirma as operações policiais não são capazes de produzir controle sobre território e população. Isso deveria ser garantido e estendido no tempo, diz ela, pelo policiamento convencional. “Não mudou em nada o status dos domínios armados no Rio”, afirma.

Nota pública do Instituto Sou da Paz aponta que, além dos parâmetros legais gerais, a ADPF 635 trouxe “parâmetros específicos para a preparação e a mitigação de riscos de operações policiais em territórios como esses”.

“É necessário que haja apuração rigorosa com a devida participação do Ministério Público e de outras entidades para identificar responsabilidades individuais e coletivas diante dos resultados desastrosos desta operação”, aponta o posicionamento.

Para o instituto, o enfrentamento do crime organizado e do domínio territorial ilegal depende muito mais de investigações profundas e do planejamento de operações focadas do que de tiroteios massivos.