Polícia

Organização criminosa tinha até cartilha com regras de conduta, aponta Ministério Público do ES

Documento com 31 pontos indicava preço de "matrícula" e de serviços de "proteção" que as comunidades deveriam pagar além de obrigações relacionadas à hierarquia do tráfico

Foto: reprodução Ministério Público do ES
Trecho da cartilha do Primeiro Comando de Vitória: 31 itens 

A organização criminosa Primeiro Comando de Vitória (PCV), que atua principalmente no Bairro da Penha, na capital, tinha um código de leis, regras e procedimentos que deveriam ser seguidos sem nenhum tipo de contestação, tanto pelos integrantes quanto pelas comunidades onde ela atuava. 

A chamada "cartilha", com 31 itens, foi revelada durante a investigação do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES), que deflagrou a "Operação Armistício" nesta segunda-feira (19). O documento demonstra um nível de organização que impressionou os agentes do MP.

Na operação, foram cumpridos mandados de busca, apreensão e prisão envolvendo detentos do sistema prisional estadual e advogados, suspeitos de intermediar a comunicação entre esses presos e foragidos da Justiça que viviam nas comunidades sob domínio do tráfico.

Na cartilha do PCV, lançada em 20 de novembro de 2018, são reveladas, entre outras regras, valores de matrículas e mensalidades de pertencimento à organização. Para se "matricular", era cobrada uma taxa de R$ 50. Para "cadastrar" a comunidade, a fim de que ela recebesse a "proteção" do grupo de traficantes, o valor era de R$ 500.

Também era exigida disciplina dos integrantes. Eles não poderiam deixar de participar das reuniões, sob risco de tomarem advertências (sem especificar quais) se houvesse ausências. 

Havia ainda uma espécie de metas a cumprir. Quem não conseguisse cumprir no prazo seria afastado de seus cargos.

A publicação aponta que o PCV tinha a pretensão de se tornar o grupo máximo em matéria de crime no Espírito Santo. "O PCV não tem guerra com nenhuma facção. O PCV é o primeiro comando de Vitória que representa o crime capixaba. Não temos nada contra, mas também não aceitaremos dentro de nossas comunidades dizeres do tipo: 'Tudo 2, tudo 3. Somos o 1!"

E deixa claro que haveria cobranças caso não fosse obedecida. "O irmão do Comando que não respeitar aquele portador de cargo ou função dentro da organização, ou de alguma forma desrespeitar a hierarquia ou a disciplina será cobrado de acordo com o ocorrido!!!!", ameaçava.

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Transferência para presídios federais

Cinco suspeitos de chefiar essa organização criminosa, que já estão presos, foram transferidos, na manhã desta segunda-feira, para presídios federais. O pedido foi feito pelo Ministério Público Estadual.

Além disso, foi determinada a aplicação de Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) a esses detentos. O RDD é uma forma especial de cumprimento da pena no regime fechado, que consiste na permanência do presidiário em cela individual, com limitações ao direito de visita e do direito de saída da cela.

O Ministério Público Estadual ressaltou que a transferência foi necessária para "prevenir eventos que venham a colocar em risco a segurança pública, a integridade física e a vida da população em geral".

Isso porque, segundo o MPES, o excesso de contato entre os detentos e alguns advogados favoreceu a prática de crimes, que eram ordenados de dentro do presídio. Os defensores são suspeitos de intermediar a troca de mensagens entre os presos e integrantes do PCV que estão foragidos.

De acordo com o Ministério Público, a partir dessa comunicação feita por meio dos advogados, líderes da quadrilha, mesmo presos, mantinham o controle do tráfico de drogas e ordenavam a execução de crimes violentos, como homicídios e incêndio a ônibus.

Foto: Reprodução / TV Vitória

Segundo as investigações, cinco detentos eram responsáveis por comandar a organização criminosa de dentro da prisão. São eles: João de Andrade, o "Joãozinho da 12"; Carlos Alberto Furtado da Silva, conhecido como "Nego Beto"; Geovani de Andrade Bento, o "Vaninho"; Giovani Otacilio de Souza , o "Bob Esponja"; e Pablo Bernardes, o "Geléia".

'Catuques' e videochamada de dentro da prisão

O Ministério Público verificou que os advogados repassavam bilhetes, chamados de "catuques", entre os presos e os criminosos foragidos. Geralmente eles eram escritos, de próprio punho, pelos presos ou narrados pelos detentos e escritos pelos advogados.

No entanto, o MPES verificou, durante as investigações, que as cartas também eram enviadas por WhatsApp aos advogados, responsáveis por repassar as ordens e gerenciamentos do crime que partiam do sistema prisional.

Ainda de acordo com o Ministério Público, em um dos atendimentos na unidade prisional, um dos integrantes da organização criminosa consegue realizar contato por videochamada com Fernando Pereira Pimenta, o "Marujo", que está foragido e é a principal liderança do grupo fora do presídio.

Um print de tela feito durante a videochamada foi encontrado no celular de uma advogada que atendeu o detento no dia, e que também é suspeita de integrar a organização criminosa. 

Excesso de atendimentos

Outro fato que chamou a atenção dos investigadores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público Estadual, foi a quantidade excessiva de visitas que os advogados faziam aos detentos e o tempo de duração delas.

Foto: Reprodução / TV Vitória

De acordo com o MPES, Joãozinho da 12 recebeu 567 atendimentos de 76 advogados diferentes. Algumas visitas tiveram duração de 8 horas, no período noturno e até mesmo de madrugada. Apenas em abril deste ano, ele foi atendido 37 vezes por 15 profissionais diferentes.

Nego Beto, por sua vez, recebeu um total de 700 visitas, de 86 defensores diferentes — uma média de uma visita a cada 26 horas.

Bob Esponja teria recebido o atendimento de 34 advogados, em um total de 153 visitas, com durações que chegaram a 8 horas.

Vaninho, que está preso desde 19 de fevereiro do ano passado, recebeu um total de 210 visitas de dez advogados diferentes. Algumas delas, segundo o MPES, tiveram duração de mais de 10 horas, estendendo-se entre o período noturno e a madrugada.

Já Geleia, preso no dia 4 de junho do ano passado, recebeu o atendimento de 36 advogados, em um total de 210 visitas. Somente no último mês de abril, ele teria recebido 28 visitas, algumas delas com duração de 5 horas.

De acordo com o Ministério Público Estadual, a quantidade excessiva de atendimentos recebidos pelos detentos e o tempo de duração das visitas reforça a ideia de que os advogados faziam a intermediação das mensagens trocadas entre os criminosos.

Advogados presos

Os advogados presos durante a operação foram encaminhados para o presídio, para instalação de tornozeleira eletrônica. Eles cumprirão prisão domiciliar e serão ouvidos pelo Gaeco, em data a ser definida.

Os mandados foram cumpridos por agentes do Gaeco, acompanhados de representantes da Comissão de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil no Espírito Santo (OAB-ES).

Foto: Reprodução / TV Vitória

Ao todo, a Justiça expediu nove mandados de prisão contra advogados, mas nem todos foram cumpridos. Até o fechamento desta matéria, seis advogados haviam sido presos, e outros três não haviam sido localizados. Um deles teria fugido pela janela após conversar com a equipe do Gaeco e com os representantes da OAB.

A equipe de reportagem da TV Vitória/Record TV acompanhou a chegada de duas advogadas detidas no final da manhã. Uma delas estava com o rosto coberto. A outra permaneceu num carro descaracterizado do Gaeco.

Advogados alvos de mandados de prisão:

- Joyce da Silva Boroto

- Márcia Borlini Marim Sanches

- Alzemir Rosa Miranda Ramos

- Thelma Barcellos Bernardes

- Paloma Maroto Gasiglia

- Lucas Depolo Muniz

- Chayene Evelyn Carvalho Moraes

- Emanuella Carlette Sobreira

- Lina Demoner Medani Tristão

Outro lado

A reportagem do Folha Vitória ainda não conseguiu localizar a defesa dos advogados que foram alvos da operação Armistício.

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