
Artigo de opinião escrito pelo jornalista Ricardo Corrêa do jornal O Estado de S. Paulo.
Foram praticamente três semanas entre o anúncio de Donald Trump de que iria impor tarifas de 50% ao Brasil e a oficialização da medida nesta quarta-feira (30) para entrar em vigor no próximo dia 6. E, ao longo do prazo, os dois países não estiveram nem perto de conseguir reverter a decisão, ao contrário do que se deu com outras nações.
Uma ‘tempestade perfeita’ – que inclui fatores políticos no Brasil e nos Estados Unidos, o perfil dos dois presidentes, exigências atentatórias à soberania nacional, questões geopolíticas e desdobramentos de decisões ao longo dos últimos anos -, construiu um muro que impediu que qualquer acordo pudesse ser até mesmo debatido.
No fim, o fato de o tarifaço ter vindo recheado de exceções acabou sendo motivo até de comemoração por apresentar um impacto, embora pesado, menos traumático do que o inicialmente apresentado.
Como disse o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, o cenário “não é o pior possível”, apesar de uma série de fatores que tornaram a negociação especialmente complicada. Eis alguns deles:
1) EUA queriam interferência no Judiciário brasileiro
Nada mais central para explicar o fracasso da tentativa de negociar até aqui como a explícita intenção do governo norte-americano de interferir no Poder Judiciário brasileiro.
Conforme Trump apresentou no próprio comunicado que confirma as sanções, a medida foi adotada em razão de posturas do Supremo Tribunal Federal (STF) e, em especial, do ministro Alexandre de Moraes, que, na visão de mundo do americano, ameaçam os Estados Unidos.
Na prática: para pressionar e tentar reverter decisões contra o aliado Jair Bolsonaro e seu entorno e o debate sobre a regulação das redes sociais, controladas por gigantes americanas. Não por acaso, a confirmação veio no mesmo dia da aplicação de sanções da Lei Magnitsky contra Moraes.
2) Em desespero, bolsonarismo atuou contra o País
Diferentemente do que se deu com outros países, como Canadá e México, logo que as primeiras tarifas foram anunciadas, o Brasil seguiu dividido diante da ameaça de tarifaço e, mais do que isso, com o núcleo central do bolsonarismo atuando abertamente por punições ao País.
Nos Estados Unidos, aproveitando-se da interlocução privilegiada com os trumpistas, Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo conspiraram diretamente para impor punições ao País como chantagem para livrar Bolsonaro da cadeia e para garantirem, a eles próprios, impunidade nos processos a que respondem.
3) Perfis de Donald Trump e Lula em colisão
Outro fator que limitou qualquer diálogo está relacionado aos perfis dos presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. Trump é reconhecido como um negociador duro, tem um flagrante desejo de controlar os destinos do mundo, como já reconheceu publicamente.
Além do mais, reconhece na situação de Bolsonaro a mesma que viveu nos Estados Unidos quando, igualmente, uma vez derrotado no processo eleitoral, agiu para tentar virar a mesa. Considera, assim, haver uma perseguição que parece lhe tocar diretamente.
Lula, por sua vez, tem pouco a colocar em jogo a essa altura da vida. Na reta final de sua carreira política, às vésperas daquela que deve ser a sua última disputa eleitoral e após ter permanecido preso por 580 dias sem que tenha capitulado politicamente mesmo quando parecia acabado, se sente forte e desprendido para pagar para ver. Sobretudo pelo fato de que o discurso de defesa da soberania traz benefícios eleitorais evidentes.
4) Eleição joga a favor de uma postura populista
Com o calendário eleitoral nas mãos, Lula aposta que será capaz de jogar na culpa de Bolsonaro qualquer dano da medida americana aos brasileiros. E que pode surfar nos efeitos imediatos de uma resistência até o limite, mesmo às custas do crescimento e do futuro de determinados setores da economia brasileira.
Enquanto isso, governadores da oposição estão imobilizados. De um lado, precisam responder ao tarifaço para garantir a proteção da economia de seus Estados. De outro, devem evitar o confronto com a família Bolsonaro, articuladora da medida, pois todos eles, sem exceção, consideram depender dos votos depositados no ex-presidente para ter alguma chance no confronto contra Lula.
Isso gera, inclusive, a incapacidade de que se unam em um único movimento. Há rachaduras explícitas, como se viu no episódio da reunião cancelada com Geraldo Alckmin em Brasília.
5) Desmonte das estruturas de interlocução dos EUA na América Latina
Ainda que o Brasil estivesse unido e com total capacidade de articulação junto aos americanos, a tarefa seria difícil. Não bastasse o perfil centralizador de Donald Trump, também há o fato de que houve, nos últimos anos, um desmonte das estruturas diplomáticas dos americanos com países da América Latina, que deixaram de ser prioridade para os Estados Unidos por algum momento.
O fato de o País sequer ter um embaixador no Brasil dificulta o diálogo e prejudica até mesmo o entendimento dos americanos sobre o funcionamento da democracia brasileira, dos freios e contrapesos, da independência do Judiciário e das conquistas que o Brasil experimentou desde a Constituição de 1988.
Os EUA também parecem ter superestimado a força do movimento bolsonarista contra o Judiciário e colherão, neste aspecto, uma derrota ao não ter seus pleitos atendidos.
6) Empresas brasileiras voltaram suas atenções para outros mercados
Também as empresas brasileiras, que podiam contribuir mais nesse papel, nos últimos anos voltaram suas atenções para outros mercados, em especial a China, deixando seus canais de interlocução, o popular “lobby”, nos Estados Unidos em segundo plano.
Pesou mais para as exceções aplicadas pelos Estados Unidos à taxa de 50% a falta de opções dos americanos para determinados produtos do que efetivamente a articulação de empresas brasileiras, embora não se possa descartar o papel ativo, por exemplo, do comando da Embraer para garantir apoio a seus produtos entre empresas de aviação dos Estados Unidos.
7) Postura do Brasil nas negociações com os Brics e países ‘não alinhados’
Donald Trump tem explicitado com frequência sua preocupação com as negociações travadas entre países para o fortalecimento dos Brics, que há muito deixou de ser apenas um fórum de debates dos interesses de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Os movimentos para ampliar o bloco e colocá-lo a serviço de uma ordem mundial não-alinhada aos Estados Unidos e com mais espaço para o Sul Global enfrentam natural e forte rejeição no governo americano.
A ideia de caminhar para a criação de um mecanismo ou moeda para driblar o uso do dólar é o exemplo mais concreto. Permitir isso seria, para Trump, como “perder uma guerra mundial”, como ele já evidenciou mais de uma vez.