Entre mamadeiras, olhares atentos e o barulho das chaves que abrem celas, nascem os primeiros meses de vida de crianças que chegam ao mundo em um presídio. Ali, a maternidade acontece sob vigilância, regras, mas também sob afeto e esperança.
No Centro Prisional Feminino de Cariacica, mulheres como Aryane Ferreira, de 32 anos, e Marcela Rodrigues, de 33 anos, ambas condenadas por tráfico de drogas e associação ao tráfico, vivenciam a experiência de ser mãe em meio ao cumprimento de pena.
Elas são as únicas mães atualmente do espaço materno-infantil da unidade, um setor onde as presas gestantes ou com bebês de até seis meses cumprem rotina separada das demais.
Brinquedos, itens infantis e cores suaves criam um contraste marcante com o ambiente de celas e portões de ferro do presídio. Por trás de cada rosto, há mais do que histórias de crimes cometidos: existem trajetórias de superação, vidas reconstruídas e famílias que resistem.
“Espero um futuro bem diferente”

Em um dos quartos, Aryane Ferreira recebe a reportagem do Folha Vitória com Carlos Eduardo, de somente 11 dias nos braços. Durante o embalo, na tentativa de manter o recém-nascido dormindo, a detenta conta a história atrás das grades da prisão.

Vim para cá quando estava grávida, com um mandado de 2020, vivia outra vida, mas a conta chega. Só não chegou em uma hora muito boa, estava indo para oito meses.”
Aryane Ferreira, 32 anos, detenta
Mãe de outros dois meninos: Guilherme, de 12 anos, e Daniel, de 10, ela viu o caçula nascer entre muros frios. Aryane deu à luz no Hospital São João Batista. Ainda assim, faz brotar ternura: o bebê é envolto em carinho, aconchego e na força que transforma o cárcere em colo, amor e segurança.
Foi ruim e doloroso saber que ia ganhar meu filho aqui dentro, mas pelo menos aqui tem um lugar apropriado para ele que dá para a gente cuidar dele melhor. Aqui, eles dão tudo que a gente precisa, eles dão fralda, o álcool para a limpeza do umbigo e dá para a gente se virar bem.”
Aryane Ferreira, 32 anos, detenta
Ao pensar no futuro, a detenta suspira, olha com ternura para o filho em seus braços e sonha acordada com uma vida diferente para sua família. Ela conta que quer se tornar psicóloga para “ajudar as pessoas”.
“Espero um futuro bem diferente do meu para ele e pretendo me formar em Psicologia quando sair daqui. Gosto de ajudar as pessoas, eu acho que as pessoas precisam de ajuda, principalmente hoje em dia no mundo doido que estamos vivendo”, disse a detenta, que está presa por tráfico de drogas.
Para alcançar os sonhos, algumas etapas, como a melhoria na educação, são escaladas dia após dia, no intuito de transformar o futuro da vida da família que a espera fora do cárcere.
“Fiz a prova do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). Preciso sair daqui, seguir minha vida tranquila e cuidar dos meus filhos, além de não deixar eles pararem no mesmo lugar que estou”, disse.
No Espírito Santo, os bebês ficam com as mães até os seis meses no alojamento materno-infantil, como o que funciona no presídio de Cariacica. A medida busca garantir os cuidados essenciais nesse início da vida e preservar o vínculo entre mãe e filho.
“Aprendi a ser mãe aqui dentro”

Em uma cela com o tema infantil, repleta de desenhos que amenizam o local, Marcela Rodrigues da Silva, de 33 anos, se mostra tímida com a câmera, mas não deixa o orgulho de lado ao falar dos filhos: Guilherme, de 17 anos, Isabelly, de 6, e Hélio, de 2 anos.
Mesmo com experiências anteriores, ela afirma que aprendeu a ser mãe no cárcere, durante a gravidez da filha do meio. Questionada sobre a maternidade, a detenta afirma que falar sobre Isabelly é tópico sensível, afinal, a maternidade por si só já é difícil e nessas circunstâncias se torna ainda mais delicada.
Vim para cá grávida, fiquei nove meses no fechado, depois vim para cá quando ganhei ela e fui embora com a Isabelly. Antes, já tinha um filho de 17 anos, mas aprendi a ser mãe aqui, no presídio.”
Marcela Rodrigues da Silva, detenta
Fora das grades, Marcela também afirma que tinha a ajuda da mãe, mas, com Isabelly “foi diferente”, quando finalmente aprendeu o verdadeiro lado da maternidade “Tive que me virar apenas eu e ela. Achava que seria de uma forma, mas foi diferente e sou muito grata”.
A detenta voltou ao presídio para cumprir uma sentença do ano de 2014, cujo semiaberto está previsto para o ano de 2027. Mesmo atrás das grades, ela recebe visita da filha.
Ela vem me visitar hoje em dia. Antes, como estava no provisório, fiquei 10 meses sem poder abraçá-la e agora vou ter a primeira entrevista de abraço. Algumas pessoas perguntaram ‘onde você teve a Isabelly’ e ela não gosta que fale que foi na cadeia.”
Marcela Rodrigues da Silva, detenta
Apesar das dificuldades, Marcela demonstra esperança e otimismo de reconstruir a própria história. “Hoje eu só tenho um objetivo, que é pegar os meus filhos. Não tem como recuperar o tempo perdido, mas tem como fazer diferente”.
O cárcere não pode ser o primeiro ambiente de uma vida

Do outro lado das grades, há um trabalho silencioso, mas decisivo, para garantir que as histórias dessas mulheres, e de seus filhos, não se repitam. Dentro do Centro Prisional Feminino de Cariacica, a rotina materna é acompanhada de perto por profissionais que se dividem entre a rigidez necessária e a sensibilidade exigida pela maternidade.
A juíza de Execuções Penais, Patrícia Faroni, explica que o olhar do Judiciário para as mães foi transformado a partir de 2018, com o Habeas Corpus Coletivo nº 143641, impetrado pela Defensoria Pública no Supremo Tribunal Federal (STF).
A decisão determinou que mulheres gestantes, lactantes ou mães de crianças de até 12 anos — ou maiores com deficiência — possam cumprir prisão domiciliar, desde que não envolvidas em crimes cometidos com violência, violência com a criança em questão ou grave ameaça.
Essa decisão foi um marco. Ela não foi pensada apenas para as mulheres, mas principalmente para as crianças, que são inocentes e acabavam encarceradas junto com as mães. O Estado entendeu que a pena não pode ultrapassar a pessoa do réu.”
Patrícia Faroni, juíza de Execuções Penais
A mudança também alterou o Código de Processo Penal e a Lei de Execuções Penais, permitindo um acompanhamento mais humano dos casos e reforçando o princípio da dignidade da pessoa.
A magistrada lembra que, antes dessas medidas, havia registros de crianças que cresceram em presídios, sem acesso à luz do sol ou à educação, histórias que hoje o sistema busca impedir que se repitam.
Com isso, o que antes era uma realidade de punição, deu lugar a uma política de cuidado e responsabilização equilibrada. As mulheres continuam respondendo pelos seus atos, mas agora em condições que respeitam o vínculo materno e o desenvolvimento infantil.
Para a juíza, esse avanço é civilizatório. Ela costuma dizer que: “O cárcere não pode ser o primeiro ambiente de uma vida”.
Nós temos históricos dolorosos no Brasil de crianças que passaram 10 anos dentro de uma prisão. Isso é inadmissível. Hoje, existe um controle muito maior. Não se fala em impunidade, e sim em justiça com humanidade. A prisão domiciliar tem regras, monitoramento e acompanhamento. É um avanço civilizatório.“
Patrícia Faroni, juíza de Execuções Penais
O destino dos bebês que nascem atrás das grades

Quando chega o momento da separação, o clima no alojamento materno-infantil muda. Depois dos seis meses dividindo a rotina, as mães precisam se despedir dos bebês, que seguem para o convívio familiar.
A diretora do Centro Prisional Feminino de Cariacica, Patrícia Castro, conta que o período de convivência entre mãe e bebê dentro da unidade é pensada para garantir o essencial: o direito à amamentação, ao vínculo e ao afeto nos primeiros meses de vida.

A gente sabe que é um ambiente com muitas dificuldades, então é impossível não se emocionar. Ao mesmo tempo, ficamos satisfeitos por conseguir oferecer um espaço humanizado, onde o bebê é acolhido e a mãe tem a chance de viver a maternidade, mesmo dentro do cárcere.
Patrícia Castro, diretora do Centro Prisional Feminino de Cariacica
O prazo de seis meses segue a recomendação do sistema prisional brasileiro e marca o fim da fase de amamentação exclusiva. Quando esse período chega ao fim, a equipe técnica da unidade inicia um trabalho cuidadoso de transição.
Assistentes sociais e psicólogas realizam o acompanhamento do desligamento, avaliando qual familiar está apto a assumir a guarda provisória da criança.
Todo o processo é feito com delicadeza e acompanhamento emocional. A equipe psicossocial atua para que o vínculo entre mãe e filho não se perca. Mesmo depois que o bebê deixa o presídio, são incentivadas as visitas quinzenais, que ajudam na continuidade da reaproximação familiar.
No último mês de outubro, por exemplo, as detentas costuraram fantasias, ensaiaram uma peça teatral e se apresentaram para os filhos durante uma visita social. O momento é conhecido entre elas como “momento do abraço”, um instante onde as grades se perdem e o calor humano se faz presente.
Desde a inauguração do alojamento materno-infantil, em 2010, ao todo, cerca de 30 mulheres passaram pela experiência de viver a maternidade dentro do presídio. Hoje, há duas lactantes e duas gestantes na unidade, com bebês de 11 dias e 5 meses.
Confira imagens da penitenciária:
“As mulheres aqui não são números”
Dentro da unidade de Cariacica, o discurso jurídico se transforma em prática diária. A diretora do presídio enxerga o espaço materno-infantil como um lugar de reconstrução, onde o afeto se alia à disciplina. Entre as rotinas de atividades pedagógicas e consultas médicas, ela acompanha de perto as mães que aprendem, muitas vezes pela primeira vez, o que é cuidar.
Aqui dentro, elas não são números. São mulheres com histórias, com filhos, com dores e com sonhos. A gente tenta mostrar que mesmo dentro do cárcere é possível plantar uma nova semente. A maternidade desperta nelas uma força imensa.“
Patrícia Castro, diretora do Centro Prisional Feminino de Cariacica
Patrícia explica que a unidade passou a adotar uma série de projetos voltados à ressocialização feminina, com foco especial na reconstrução dos vínculos familiares.
Entre eles, o Ateliê Mãos Livres, onde as internas produzem figurinos, brinquedos e peças de crochê que são usados nas apresentações teatrais organizadas para os filhos durante as visitas sociais.
Elas costuram as fantasias, ensaiam as peças e vivem aquele momento de encantamento com os filhos. É algo simbólico, mas muito poderoso. Ali, por alguns minutos, elas deixam de ser presas e voltam a ser apenas mães.”
Patrícia Castro, diretora do Centro Prisional Feminino de Cariacica
Rotina de cuidados, escuta e disciplina
A policial penal Elaine Caetano, que atua diretamente com as mulheres do setor materno-infantil, reforça que o convívio com as mães e os bebês exige empatia e preparo emocional. A rotina é marcada por cuidados, mas também por escuta e, em muitos casos, pela ausência de familiares.

A gente convive com histórias muito duras. Tem mulher que não recebe visita, que não tem ninguém lá fora. Então, o bebê vira o único vínculo de amor. O nosso papel é garantir que esse vínculo se mantenha de forma saudável.
Elaine Caetano, policial penal
Elaine também participa das atividades culturais e dos projetos de formação dentro do presídio. Segundo ela, o teatro, o crochê e as ações coletivas têm papel fundamental na ressignificação do cárcere.
“Quando elas estão no palco, com os filhos na plateia, é como se o tempo parasse. Ali, o uniforme dá lugar à fantasia, e o olhar delas muda. É um momento de reconstrução da autoestima e da esperança”, disse.
Entre os muros frios, a maternidade se torna resistência. Cada colo, cada choro, cada peça costurada à mão carrega o mesmo propósito: o de romper o ciclo que aprisiona não apenas o corpo, mas também o destino.
E, nas palavras de uma das internas:
“Aqui dentro, aprendi que mãe não é só quem dá à luz. É quem luta, todos os dias, para dar um amanhã melhor.”
Caráter punitivo não existe sozinho
Os direitos dos direitos das mães e dos bebês é garantido diante da Constituição Federal. A assistente social da Penitenciária Feminina de Cariacica, Rogéria Gomes, de 36 anos, afirma que, no ambiente, há um aspecto punitivo, mas também de ressocialização.

O presídio, tem uma questão que é punitiva, mas temos a questão de ressocialização. Esse caráter punitivo não existe sozinho, então queremos a aproximação familiar e isso gera benefícios imensos, são fatores de proteção social.
Rogéria Gomes, assistente social
Entre o processo de ressocialização, ressignificação de trajetórias e fortalecimento de vínculos familiares, as visitas sociais ganharam um toque especial no mês de outubro, mais conhecido como “mês das crianças”.
As mulheres privadas de liberdade se revezam em cerca de 50 apresentações voltadas para os filhos, dando vida a personagens como: Frozen, Branca de Neve, Minnie e Mickey, Mulher Maravilha, Chapeuzinho Vermelho e Dory, do filme Procurando Nemo.
O momento se torna ainda mais especial, pois os figurinos e brinquedos das apresentações foram produzidos na própria unidade prisional, no Ateliê Mãos Livres, um espaço que une trabalho e arte, onde 12 internas confeccionam peças em tecido e crochê.
“As internas estão presentes e se envolvem em todas as etapas do projeto teatral, desde a criação das fantasias e dos brinquedos até a atuação, criação dos roteiros, ensaios até chegar nas apresentações teatrais para as famílias”, destaca a diretora do presídio, Patrícia Castro.
O papel da Defensoria nas maternidades do cárcere

No Espírito Santo, a Defensoria Pública tem atuado de forma constante para garantir que o nascimento e o cuidado nos presídios sejam tratados com humanidade e dentro da lei.
A defensora pública Marina Leão, do Núcleo de Presos Provisórios, explica que o primeiro passo da atuação começa ainda nas audiências de custódia, momento em que é possível evitar que mulheres grávidas ou mães de recém-nascidos ingressem no sistema prisional.
A prioridade é assegurar que essas mulheres possam cumprir medidas em casa, quando possível, evitando que a pena ultrapasse a figura da mãe e afete a infância.
Nosso objetivo é assegurar que a prisão domiciliar seja priorizada em relação ao encarceramento, justamente porque a pena não pode ultrapassar a pessoa da mãe e atingir a infância. A prioridade deve ser sempre a proteção e a dignidade da criança, garantindo o convívio com sua genitora, especialmente nos primeiros anos de vida.”
Marina Leão, defensora pública
Quando a prisão é inevitável, a Defensoria acompanha cada caso de perto, realiza mutirões, protocola pedidos de liberdade e prisão domiciliar, e inspeciona periodicamente as unidades femininas.
Essas visitas que a Defensoria realiza nos presídios, segundo Marina, são fundamentais para ouvir as detentas e compreender o que acontece por trás dos muros.
A entrevista reservada com cada mulher é essencial para que possamos identificar falhas, garantir direitos e promover ações concretas de cuidado. É nesse contato direto que surgem relatos sobre saúde, sobre o impacto psicológico da separação entre mãe e bebê e, muitas vezes, sobre o abandono familiar.”
Marina Leão, defensora pública do Espiríto Santo
No Estado, os berçários e alas materno-infantis têm mantido estrutura adequada para assegurar o aleitamento e o acompanhamento médico dos bebês até os seis meses. Depois disso, a criança é encaminhada para a família extensa, geralmente avós, tios ou o próprio pai.
Quando não há esse suporte, a Defensoria também atua para regularizar a guarda ou acompanhar os casos que envolvem acolhimento institucional.
Para Marina, o desafio maior ainda é tornar a maternidade no cárcere menos solitária e mais digna. “O ideal seria ampliar o atendimento psicológico e de saúde mental dessas mulheres. A separação de um filho é um trauma imensurável, e o cuidado emocional precisa caminhar junto com o jurídico”, defende.
Todo esse trabalho é feito para que essas mulheres tenham, ao menos, o mínimo de dignidade dentro do sistema prisional. Sabemos que o cárcere é uma realidade extremamente sensível, principalmente para mães, e o papel da Defensoria é justamente atuar para transformar essa realidade, promovendo respeito, cuidado e humanidade
Marina Leão, defensora pública do Espiríto Santo
Hoje, o Espírito Santo é considerado referência nacional no cuidado com gestantes e lactantes privadas de liberdade. Esse resultado, reforça a defensora, vem da soma de esforços entre instituições, do Judiciário à Defensoria, para transformar um ambiente historicamente punitivo em um espaço, ainda que limitado, de acolhimento e respeito à vida.






