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Por que não nos lembramos de quando éramos bebês? Neurocientista explica o fenômeno por detrás da chamada “amnésia infantil”

Fenômeno conhecido como amnésia infantil tem explicação neurológica relacionada à maturação cerebral e ao desenvolvimento da memória

Amnésia Infantil/Reprodução
Amnésia Infantil/Reprodução

É comum que adultos não se recordem de acontecimentos vivenciados nos primeiros anos de vida.

Datas de aniversários, primeiros passos, vozes familiares ou mesmo episódios marcantes muitas vezes desaparecem da memória com o passar do tempo.

Esse fenômeno, conhecido como amnésia infantil, é amplamente observado, mas ainda desperta curiosidade sobre suas causas e implicações.

De acordo com o neurocientista Dr. Fabiano de Abreu Agrela, pós-PhD em Neurociências e especialista em genômica comportamental, esse esquecimento inicial não apenas é normal, como também necessário para o desenvolvimento cerebral saudável.

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PODA NEURAL: UM MECANISMO DE OTIMIZAÇÃO DO CÉREBRO INFANTIL

A principal explicação para a amnésia infantil está em um processo chamado poda sináptica, que acontece com intensidade durante a infância. Segundo o Dr. Abreu Agrela, esse mecanismo tem início por volta dos dois anos de idade e segue até aproximadamente os sete anos.

Durante esse período, o cérebro elimina conexões sinápticas consideradas desnecessárias para o desenvolvimento.

“É um sistema de economia neural: o que não é reforçado, desaparece”, explica.

Memórias precoces, por estarem associadas a circuitos instáveis ou pouco relevantes à sobrevivência, acabam sendo descartadas.

A seleção dessas conexões não é aleatória. O cérebro prioriza ligações que favorecem funções básicas e comportamentos essenciais para a adaptação ao ambiente. Por isso, recordações episódicas — como rostos, sons ou eventos específicos — não permanecem, enquanto habilidades motoras e sensoriais têm mais chance de serem preservadas.

Desenvolvimento do cérebro/Reprodução
Desenvolvimento do cérebro/Reprodução

O CÉREBRO EM CONSTRUÇÃO PRIORIZA A SOBREVIVÊNCIA

Nos primeiros anos de vida, o cérebro concentra grande parte de sua energia no desenvolvimento de funções fundamentais, como a coordenação motora, o reconhecimento facial, a aquisição da linguagem e a capacidade de reagir a estímulos.

De acordo com o especialista, essa é uma fase voltada mais à reação e adaptação do que à memorização.

“Memórias motoras e sensoriais como engatinhar, andar, identificar a voz da mãe ou reagir a sons são preferenciais. Isso explica porque recordamos muito pouco do início da vida; o foco não era lembrar, mas reagir e adaptar”, afirma o neurocientista.

Esse cenário reforça a ideia de que a amnésia infantil é um subproduto da própria evolução neurológica. Não se trata de uma falha da memória, mas sim de uma estratégia biológica para otimizar o desenvolvimento cognitivo e emocional nos primeiros anos.

O HIPOCAMPO IMATURO E O PAPEL DOS NEURÔNIOS-ESPELHO

Outro ponto relevante na explicação científica para a amnésia infantil é o papel das estruturas cerebrais envolvidas na consolidação das memórias. O hipocampo, região responsável por armazenar memórias de longo prazo, ainda está em processo de amadurecimento na infância.

Enquanto isso, outras áreas do cérebro, como os neurônios-espelho, ganham destaque. Esses neurônios são fundamentais para o aprendizado por observação, ajudando bebês a imitar gestos, reconhecer expressões faciais e entender emoções alheias — habilidades sociais e motoras essenciais para a integração no ambiente.

“Nos primeiros anos, os neurônios-espelho são muito mais ativos que o hipocampo”, explica o Dr. Abreu Agrela. Essa predominância favorece o aprendizado prático e interpessoal, mas não promove o armazenamento consciente de memórias narrativas organizadas no tempo.

MEMÓRIAS EMOCIONAIS: O QUE FICA MESMO SEM RECORDAR

Apesar de não haver lembranças estruturadas do início da vida, é possível que persistam traços emocionais e sensoriais dessa fase. Isso se deve à atuação de regiões mais primitivas do cérebro, como a amígdala e outras áreas do sistema límbico, que armazenam reações afetivas e instintivas.

“Sensações como o conforto do colo da mãe ou o medo de um som alto podem permanecer registradas, mesmo que não possamos descrevê-las com palavras”, afirma o especialista.

Essas memórias, ainda que não acessadas de forma consciente, influenciam comportamentos, vínculos afetivos e até reações emocionais na vida adulta.

Entretanto, para que uma lembrança seja acessada de forma narrativa — com começo, meio e fim — é necessário que o cérebro atinja um nível maior de organização e estabilidade sináptica. Isso só acontece mais adiante, geralmente por volta dos seis ou sete anos de idade.

Memórias infantis/Reprodução
Memórias infantis/Reprodução

O INÍCIO DO “ARQUIVO” DE MEMÓRIAS DURADOURAS

Com o passar dos anos e o amadurecimento das estruturas neurais, especialmente o hipocampo e o córtex pré-frontal, o cérebro passa a consolidar memórias de forma mais estável. Esse processo marca o fim gradual da amnésia infantil e o início da formação consciente da identidade pessoal e da memória autobiográfica.

A partir desse ponto, as crianças começam a relatar experiências com clareza crescente, desenvolvendo a capacidade de contar histórias sobre o que viveram. O cérebro torna-se, então, um verdadeiro “arquivo” de lembranças organizadas e acessíveis.

Esse marco é fundamental não apenas para a memória, mas também para a construção da noção de tempo, da linguagem narrativa e do senso de continuidade do eu.

AMNÉSIA INFANTIL: UM PROCESSO NATURAL E NECESSÁRIO

Em síntese, o esquecimento dos primeiros anos de vida, longe de ser um problema, é parte essencial do desenvolvimento humano. A amnésia infantil é resultado de uma combinação de fatores neurológicos — como a poda sináptica, a imaturidade do hipocampo e a predominância de outras funções cerebrais — que visam preparar o cérebro para desafios mais complexos.

Entender esse processo ajuda a desmistificar a ausência de lembranças da infância e reforça a importância dos primeiros anos como um período de intenso aprendizado, ainda que não registrado conscientemente. As experiências vividas nesse período moldam profundamente o comportamento, as emoções e as habilidades sociais, mesmo que não possam ser diretamente recordadas.

Assim, a amnésia infantil não é uma falha da mente, mas um reflexo de sua incrível capacidade de adaptação e evolução. E se não nos lembramos de quando éramos bebês, é porque nosso cérebro estava, naquele momento, ocupado em aprender a viver.

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