Da esquerda para a direita: Cleiton, Fernanda e Marcos Antônio. (Foto: Arquivo pessoal)
Da esquerda para a direita: Cleiton, Fernanda e Marcos Antônio. (Foto: Arquivo pessoal)

O Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrado nesta quinta-feira (20), reconhecido como feriado nacional pelo segundo ano consecutivo, não é apenas um marco no calendário. É um lembrete vivo de que a história do Brasil foi construída também pela coragem e pela resistência do povo negro, que há séculos enfrenta o racismo estrutural e, apesar dele, transforma o país todos os dias.

Criada por lei em novembro de 2023, a data reforça a urgência de políticas antirracistas e a necessidade de amplificar trajetórias que, mesmo cercadas por desigualdades, seguem abrindo caminhos em diversas áreas, como no empreendedorismo.

No Espírito Santo, empreendedores negros estão ocupando espaços, gerando oportunidades e movimentando a economia capixaba.

Um exemplo é a trajetória de Cleiton Nascimento, mineiro de Santa Luzia, distrito de Belo Horizonte, que vive no Espírito Santo há 11 anos. Ele uniu duas paixões em um único produto: o Café do Açaí. A bebida, já tradicional no Norte do país, desembarcou no Estado pelas mãos do empreendedor e rapidamente conquistou o paladar dos capixabas.

Vegetariano, Cleiton começou de forma simples, plantando pés de açaí no quintal de casa. Com o incentivo da esposa, foi expandindo a produção pouco a pouco. Hoje, além de cultivar o fruto, ele criou o Café do Açaí, uma bebida sem cafeína, rica em nutrientes e que vem ganhando adeptos que buscam uma alternativa ao café tradicional sem abrir mão do sabor.

Mas antes de empreender, Cleiton acumulou anos de batalha: enfrentou o desemprego durante a pandemia, trabalhou em obras, lidou com preconceito, dificuldades financeiras e o peso constante de sentir que, por ser um homem negro, precisaria provar seu valor mais do que os outros.

A história dele se conecta à de outros empreendedores negros capixabas que, no Dia da Consciência Negra, mostram que empreender também é um ato de afirmação, identidade e resistência.

Histórias como a de Marcos Antônio, artesão da Serra que mantém viva a tradição das casacas — instrumento musical com raízes negras e indígenas —, e de Fernanda, criadora da Aloha Crochetaria, que transformou o crochê em autonomia financeira e afeto.

Café de açaí que conquistou o ES

Cleiton Nascimento e Cássia rosa do nascimento (Foto: Arquivo pessoal)
Cleiton Nascimento e Cássia Rosa do Nascimento (Foto: Arquivo pessoal)

Cleiton Nascimento transformou a própria história, marcada por simplicidade, preconceito e reinvenção, em um empreendimento que ganha feiras, mercados e prateleiras pelo país: o Café do Açaí.

A bebida, produzida a partir do caroço torrado e moído do açaí, é semelhante ao café tradicional, mas sem cafeína, e se tornou o símbolo de uma virada que mistura saúde, criatividade, ancestralidade e resistência.

Filho de mãe negra e pai branco, o empreendedor cresceu em uma favela de Belo Horizonte, onde, como ele mesmo diz, “a favela venceu”. Ele relembra que, ainda na escola, mesmo sendo bom em matemática e áreas exatas, já sentia as primeiras marcações do racismo.

Eu já sofri preconceito por ser preto. Às vezes eu tinha mais desenvoltura que os outros, mas por eu ser de cor, a professora dava mais atenção para quem tinha a pele mais clara.

Cleiton Nascimento, empreendedor e dono do Café de Açaí

Essas vivências o acompanharam na vida adulta. Experiências como ser subestimado ao comprar um carro ou entrar em novos ambientes acabaram moldando sua relação com identidade e autoestima.

Sempre senti que quando a gente começa a crescer, as pessoas não acreditam. Acham que preto não vai conseguir. Hoje eu gosto de mim, do jeito que eu sou. Eu me amo”, afirma.

Ao lado esquerdo, o início do Café de Açaí, ao esquerdo como está a marca atualmente (Foto: arquivo pessoal)
Ao lado esquerdo, o início do Café de Açaí, ao esquerdo como está a marca atualmente (Foto: arquivo pessoal)

A história do Café do Açaí nasceu quase por acaso. Bombeiro hidráulico de formação e vencedor da Olimpíada do Conhecimento do Senai, Cleiton perdeu toda a renda durante a pandemia.

Sem obras para trabalhar, recorreu à despoupadeira de açaí que havia comprado anos antes, após uma viagem ao Amapá, movido pela paixão, alimentação saudável e pela curiosidade em torno da fruta amazônica.

Início foi em barraca na feira

No início, ele produzia apenas polpa para consumo da família. Depois, começou a vender na feira, em uma barraquinha improvisada, com plaquinha de papelão e isopor emprestado. O café só surgiu porque um cliente comentou que o caroço torrado poderia ajudar pessoas com diabetes.

Sem recursos, Cleiton comprou um moedor manual, pediu à sogra para torrar os caroços no fogão a lenha e levou os primeiros pacotinhos para a feira. Saíam poucos: “um, dois, três por dia”.

A virada veio quando uma matéria sobre sua história foi ao ar, dando visibilidade ao produto. Logo depois, ele passou a participar das feiras da Agência de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas e do Empreendedorismo (Aderes), que ele descreve como o grande “propulsor” do negócio. “Eu vendi 200 pacotinhos em um dia. Parecia que eu estava sonhando”, lembra.

Hoje, com uma estrutura própria, ainda pequena, mas crescente, ele, a esposa e as duas filhas produzem, torram, moem e embalam tudo em casa. O café já chega a São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte e diversos municípios capixabas.

O café do açaí mudou a minha vida. Foi a primeira vez que pude ver o resultado do suor do meu rosto”.

Cleiton Nascimento, empreendedor e dono do Café de Açaí

Para o empreendedor, construir um negócio sendo um homem negro tem um significado que vai além do faturamento. É sobre provar que é possível ocupar espaços historicamente negados e inspirar outras pessoas.

Eu sempre senti que não chegava nos lugares de igual para igual. Mas hoje eu olho e penso: consegui. Minha família conseguiu”.

Cleiton Nascimento, empreendedor

A casaca que atravessa gerações

Casacas feitas pelo ateliê do Marcos (Foto: Arquivo Pessoal)
Casacas feitas pelo ateliê do Marcos (Foto: Arquivo Pessoal)

Aos 53 anos, o artesão Marcos Antônio da Silva transformou a casaca — instrumento símbolo do congo capixaba e de profundas raízes negras e indígenas — na principal fonte de renda da sua família e em uma ferramenta de preservação ancestral.

O que começou como uma forma de ajudar a esposa no ateliê se tornou sua vocação, levando o instrumento produzido por suas mãos a feiras internacionais, museus da Itália e eventos globais no Espírito Santo.

Morador do bairro Pitanga, na Serra, Marcos é um dos nomes que ajudam a manter viva uma tradição cultural marcada pela resistência negra — tema central das celebrações do Dia da Consciência Negra.

Sua trajetória começou dentro de casa: a esposa, Crislei Conceição, aprendeu o ofício com o Mestre Domingos, referência na confecção da casaca. Mais tarde, Marcos entrou “para ajudar” e acabou descobrindo uma paixão.

Marcos Antonia e sua esposa (Foto: Arquivo Pessoal)
Marcos Antonia e sua esposa (Foto: Arquivo Pessoal)

O casal mantém hoje um ateliê que virou ponto de cultura, onde recebem escolas, crianças da comunidade e grupos como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Cariacica para oficinas que ensinam, passo a passo, a arte de produzir a casaca — garantindo que o conhecimento não se perca.

Se a gente não passa para frente, some. E as nossas raízes não podem sumir”, afirma Marcos.

Além de instrumentos musicais, o ateliê produz casacas ornamentais feitas com madeira de demolição recolhida em áreas quilombolas de Santa Leopoldina e de limpezas de pasto, transformando descarte em arte.

A sustentabilidade virou diferencial. O trabalho rendeu reconhecimento: casacas do ateliê já foram enviadas para a Colômbia, em feira internacional, e também para o Museu Sonoro de Riva e um museu em Milão, na Itália.

A produção impressiona: são mais de 5 mil casacas por ano, desde peças de 15 centímetros feitas para eventos como a conferência internacional do clima realizada no Espírito Santo, até instrumentos de 70 centímetros, feitos sob encomenda.

O artesão destaca ainda o papel fundamental da Aderes e do Sebrae, que oferecem editais, estrutura e apoio para participação em feiras. “A Aderes funciona como uma âncora para nós. Eles dão suporte, estande, às vezes transporte. Para quem é empreendedor, isso faz toda a diferença”, diz.

Marcos fala com orgulho sobre ser um empreendedor negro que leva a cultura capixaba para o mundo.

Quando penso na nossa cultura negra, eu me arrepio. Tudo que nossos ancestrais viveram… e hoje, através do empreendedorismo, a gente consegue transformar essa cultura em sustento, dignidade e orgulho.”

Marcos Antonio da Silva, artesão e empreendedor

E deixa um conselho para quem está começando:

Não desista. Às vezes a gente tem um potencial enorme e fica com medo do que as pessoas vão dizer. Coloque um pé na frente e siga. Sonhar é bom, mas você precisa caminhar para realizar.”

Marcos Antonio da Silva, artesão

O ateliê funciona na Serra, no bairro Pitanga, e as casacas podem ser compradas no local, em feiras culturais ou em pontos de venda como o Farol de Santa Luzia, o Urso Mercado e a Igreja dos Reis Magos, em Nova Almeida.

Do quintal de casa às passarelas internacionais

Fernanda Ferreira Correa, 38 anos, artesã,  empreendedora e criadora da Aloha Crocheteria (Foto: Arquivo pessoal)
Fernanda Ferreira Correa, 38 anos, artesã, empreendedora e criadora da Aloha Crocheteria (Foto: Arquivo pessoal)

Entre as histórias que mostram a força do empreendedorismo negro no Espírito Santo está a de Fernanda Ferreira Correa, 38 anos, artesã e criadora da Aloha Crocheteria, um negócio que nasceu de maneira espontânea e hoje rompe fronteiras, literalmente.

Fernanda conta que começou a produzir peças de crochê em 2016, inicialmente para uso próprio. O talento chamou a atenção de uma amiga que, ao usar as peças durante uma viagem ao Rio de Janeiro, acabou impulsionando a marca.

Ela tinha bastante seguidores nas redes sociais e começaram a perguntar de onde eram as peças. Ela me indicou e foi a minha virada de chave.”

Fernanda Ferreira Correa, artesã e criadora da Aloha Crocheteria

Acostumada ao comércio desde criança, começou a trabalhar aos 8 anos em feiras com a família, Fernanda encontrou no crochê uma forma de complementar a renda e reforçar sua identidade como mulher negra empreendedora.

Em 2017, viveu um momento que considera divisor de águas: uma peça sua foi exposta ao vivo pela apresentadora Ana Maria Braga, na TV. “Deu um boom. Comecei a ter mais visibilidade e parcerias”, conta.

Biquíni de crochê e vestido premiado em Miami (Foto: Arquivo Pessoal)
Biquíni de crochê e vestido premiado em Miami (Foto: Arquivo Pessoal)

A trajetória seguiu crescendo. Em 2023, Fernanda foi selecionada entre os 10 destaques do Expo Favela ES, evento que reúne negócios de empreendedores das periferias. Com isso, representou o Espírito Santo na edição nacional, em São Paulo.

Eu nunca imaginei que minhas peças iriam tão longe. Estar ali foi uma das maiores representatividades da minha vida.”

Fernanda Ferreira Correa, artesã

Hoje, a Aloha Crocheteria vende peças personalizadas, veste clientes no Brasil e no exterior, inclusive um vestido exclusivo que chegou a Miami, nos Estados Unidos, e se mantém como referência para mulheres que desejam empreender. Muitas dizem ter encontrado inspiração ao ver seu trabalho ganhar espaço.

Fernanda também participa das feiras da Aderes, que, segundo ela, foram fundamentais para profissionalizar seu negócio. “A Aderes abre portas gigantescas para quem é artesã. Dá estrutura, oportunidade e visibilidade”, ressalta.

Quando perguntada sobre a mensagem que deixa para outras mulheres negras que sonham em empreender, ela responde com firmeza:

A gente não pode se limitar. Às vezes a palavra de alguém tenta te colocar para baixo, mas você não pode se acomodar nas dificuldades. Elas viram aprendizado e inspiração para outras pessoas. O sonho acontece quando você insiste.

Fernanda Ferreira Correa, artesã

As histórias de Marcos, de Cleiton, Fernanda e de tantos outros empreendedores negros revelam como a construção de caminhos possíveis ainda exige persistência diária diante das desigualdades que atravessam o país.

No Dia da Consciência Negra, a frase da professora e filósofa Lélia Gonzalez ecoa como síntese dessa jornada: “Nós não nascemos negros, nós nos tornamos negros. Uma dura, cruel e permanente empreitada que se desenrola ao longo de toda a nossa vida.”

O Brasil avança, mas a potência desses empreendedores evidencia que, enquanto o racismo estrutural continuar impondo barreiras, celebrar o 20 de novembro será sempre também reafirmar luta, dignidade e a urgência de políticas que garantam oportunidades reais para todos.

Leiri Santana, repórter do Folha Vitória
Leiri Santana

Repórter

Jornalista pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e especializada em Povos Indígenas.

Jornalista pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e especializada em Povos Indígenas.