Livro Coisa de Rico
Livro "Coisa de Rico", de Michel Alcoforado (Foto: Reprodução / Instagram @camillaeseuslivros)

*Artigo escrito por Mariana Weigert de Azevedo, psicóloga clínica e psicanalista, especialista em infância e adolescência. Atua em clínica particular com adolescentes e adultos, e também em orientação parental e pedagógica.

Em uma sociedade que coleciona títulos e símbolos de status, seguimos atravessados por um vazio e por uma angústia existencial que escapam à lógica do consumo.

Coisa de Rico, de Michel Alcoforado, figura há semanas entre os livros mais vendidos. Confesso que foi esse lugar de destaque que despertou minha curiosidade, mais do que o título em si. O que circula tanto costuma dizer mais do que aparenta. Em poucos minutos, o livro já estava no meu Kindle – e percebi que, embora fale de consumo e status, ele diz muito mais sobre os bastidores do pertencimento. Foi aí que comecei a pensar no quanto isso ecoa na clínica.

O autor observa a elite brasileira – incluindo os chamados novos ricos – a partir de cenas do cotidiano, códigos sutis e hábitos que sustentam posições sociais. Mas o que ele revela vai além do que se vê. Há uma engrenagem silenciosa, quase automática, que empurra muitos a buscar no olhar do outro uma espécie de validação: estou no lugar certo? Estou do lado certo?

Esse funcionamento parece ainda mais acentuado entre os grupos emergentes – para quem, como o próprio nome quase diz, existe uma urgência maior em “parecer rico”. Por isso, as ações tendem a ser mais intensas, mais visíveis, mais performáticas.

Morando em uma grande-pequena cidade como Vitória, esse movimento salta aos olhos. O cotidiano funciona como um laboratório social. Marcas, lugares, estilos de vida – o chamado lifestyle – e modos de consumo operam como cartões de visita. Tudo parece precisar estar nomeado e validado. Como se existir exigisse uma autorização prévia, quase como se dignidade e valor pessoal se confundissem com o que se consegue exibir.

Já reparou que há um “caminho” quase padronizado – de lojas, restaurantes, escolas, academias, perfis no Instagram – que parece precisar ser seguido para se inserir? Seria bastante interessante – e até produtivo – refletir se o sujeito está ali por desejo genuíno, ou se apenas repete, em nome do pertencimento, aquilo que identifica uma determinada tribo.

De um lado, há uma satisfação breve a cada novo “check” da vida idealizada. Do outro, na escuta clínica, o que aparece é que, em relação à angústia e ao sofrimento, pouco se transforma. O acúmulo de signos não dá conta do mal-estar – muitas vezes, apenas encobre uma tentativa insistente de silenciar um vazio que retorna.

E é justamente aí que mora a grande questão: nunca se viu tanto adoecimento psíquico. Basta observar os índices crescentes de depressão, especialmente entre as novas gerações. O vazio insiste porque não encontra escuta, elaboração, linguagem. E o que não se simboliza, adoece.

Um dos méritos do livro está no humor com que descreve cenas reconhecíveis do cotidiano. A graça está ali – e, ao mesmo tempo, revela pactos silenciosos, naturalizados, que raramente questionamos.

Não se trata apenas de dinheiro, mas de uma operação simbólica. Em muitos casos, o sujeito se sustenta mais no olhar do outro do que em um desejo próprio. Isso sempre foi matéria de análise. O que talvez se intensifique hoje é a naturalização desse funcionamento – como se ele fosse não apenas aceitável, mas necessário.

O rótulo promete pertencimento, mas cobra um preço alto. Quando a dignidade passa a depender da performance, o sofrimento encontra terreno fértil.

Estamos sempre tocando o grande buraco da angústia – e, sem elaboração possível, não há bem de consumo nem medicação que dê conta de tamanha falta. O sujeito adoece não por ter pouco, mas por não saber o que fazer com o que falta.

Talvez pertença quem consegue suportar a própria falta – não para preenchê-la, mas para fazer dela um ponto de partida. É aí que, às vezes, algo da vida recomeça e se desloca.

Mariana Weigert de Azevedo é psicóloga clínica e psicanalista
Mariana Weigert de Azevedo é psicóloga clínica e psicanalista