Registrar a própria vida é um gesto de coragem e cuidado: a escrita como caminho para compreender-se.
Registrar a própria vida é um gesto de coragem e cuidado: a escrita como caminho para compreender-se.

adolescência é uma fase de busca pela identidade — um período biológico de transição entre a infância e a idade adulta, estruturante na formação simbólica do sujeito.

Como adolescente, eu era bastante introspectiva. Evitava pedir opiniões alheias e preferia encontrar, sozinha, caminhos para compreender o mundo e a mim mesma. Foi então que descobri, na escrita de diários, uma forma de elaborar, processar e compreender as novidades e inquietações desse universo juvenil.

Um diário é, antes de tudo, um refúgio íntimo da palavra. Ali se depositam experiências, sentimentos e reflexões, transformados em textos, desenhos ou pequenos vestígios do cotidiano. É um diálogo silenciosocom o próprio eu, uma maneira de dar forma e sentido ao que transborda por dentro.

Com o tempo, percebi o quanto isso fazia sentido em minha própria história. Desde pequena, eu já esboçava a escrita em textos poéticos, mas foi na adolescência que comecei a escrever em diários no formato confessional. Escrevia à mão, num ritual quase religioso: todas as noites, sentava-me à escrivaninha e me obrigava a escrever, pois entendia que “diário” devia ser, de fato, diário. Enfeitava as páginas com adesivos, ingressos de cinema e pequenos recortes que, de alguma forma, contavam minha história.

Naquela época, o universo feminino adolescente era moldado por referências muito específicas. Eu comprava a Revista Capricho na banca e passava horas folheando suas páginas coloridas, fazendo testes como “Você se apaixona fácil demais?” e lendo conselhos sobre amizade, moda e amor. Havia ali um espaço de identificação, um território de descobertas emocionais que, de certo modo, dialogava com o que eu escrevia nos meus diários. Tudo era muito girly, como diriam as adolescentes de hoje — e, ao mesmo tempo, profundamente formador da minha subjetividade.

Dito isso, escrever em um diário não exige rigidez, mas uma certa constância: registrar o que importa e o que marca. Ainda hoje, persiste a ideia de que manter um diário é “coisa de mulherzinha”, como se a escrita íntima fosse privilégio das sensibilidades femininas. No entanto, o hábito de registrar a própria vida interior não tem gênero: é humano. Qualquer pessoa interessada em compreender-se pode — e talvez devesse — experimentar esse exercício de sinceridade e escuta de si.

O diário como espelho e abrigo

Diversas pesquisas apontam benefícios expressivos no hábito de escrever em um diário. A escrita regular melhora o humor, reduz o estresse e favorece a consciência emocional. Há também estudos que indicam impactos positivos sobre a imunidade, a pressão arterial e a qualidade do sono. Incrível, não é mesmo? Em síntese, escrever em um diário não é apenas uma forma de extravasar emoções — é uma prática cientificamente comprovada de promoção do bem-estar e da saúde mental (consulte aqui: childmind.org).

Ainda guardo uma caixa repleta de diários daquela época. Raramente os releio — não por negar o passado, mas porque já há angústias novas o suficiente (brincadeiras à parte!). Revisitar o que fomos pode ser doloroso, mas também é um reencontro com fragmentos de nós que ainda permanecem. Estão ali, guardados, como uma memória possível de ser acessada quando for preciso.

Acredito que esse hábito teve papel fundamental na minha formação como escritora. Embora o diário seja um gênero íntimo e informal, ele exige a organização das ideias, a busca por palavras específicas e uma estrutura que faça sentido. Dentro da mente, o pensamento parece claro; no papel, ele exige forma, precisão e coerência. Esse exercício é, por si só, uma escola de escrita. Por isso, penso que manter um diário na adolescência é uma porta que, uma vez aberta, nunca mais se fecha para quem deseja escrever bem.

Em 2024, quando trabalhava em uma escola estadual do Espírito Santo, propus uma disciplina eletiva intitulada “Meu diário, com carinho”. O objetivo era oferecer aos alunos um espaço de expressão livre e criativa, no qual pudessem registrar vivências, sentimentos e reflexões. Utilizando múltiplas linguagens — escrita, desenho, pintura e colagem —, a proposta favorecia a autoexpressão, o autoconhecimento e a empatia.

O diário, como ferramenta de reflexão pessoal, cria um ambiente de segurança emocional, onde os alunos podem desenvolver sua subjetividade, praticar a gratidão e organizar os pensamentos. Em um contexto escolar marcado por casos de automutilação e violência doméstica, oferecer um espaço de escrita sigilosa era, muitas vezes, uma forma de cuidado e acolhimento.

Como afirma Valéria Amorim Arantes em “O desenvolvimento da subjetividade na escola: um desafio para educadores”, o cultivo da subjetividade nas instituições de ensino é essencial para a formação integral do indivíduo, fortalecendo a autonomia e a inteligência emocional.

A escrita que nos sustenta

Muitos autores transformaram o diário em um verdadeiro confidente, chegando até a personificá-lo. Anne Frank fez isso de modo comovente. Em 12 de junho de 1942, registrou: “Espero poder contar tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e ajuda”.

Durante os dois anos em que viveu escondida com a família, Anne relatou em seu diário as angústias e a rotina do confinamento — um testemunho sensível e doloroso da Segunda Guerra Mundial que atravessou o tempo e se tornou símbolo de coragem.

Eu também continuo escrevendo em diários, embora com menos regularidade. Às vezes, anoto uma frase que me marcou; outras, um sentimento que não quero deixar escapar.

Muitos dizem que escrever é uma forma de terapia. Não são a mesma coisa, claro — o diário é um exercício monológico e silencioso —, mas é inegável o quanto essa prática nos leva à reflexão e contribui para o equilíbrio emocional.

Ao escrever sobre si, resgatamos partes de nós que nem sabíamos existir — um gesto de liberdade plena, que permite registrar o banal e tentar compreender o inexplicável. É também um exercício de honestidade radical, um espaço onde se pode confessar o que não se diria a ninguém, nem a si mesmo. Até mesmo as mentiras que porventura escrevemos acabam, de algum modo, retornando em forma de verdade.

Recomendo o hábito a todos — adolescentes ou adultos, mulheres ou homens. Escrever um diário é um gesto simples, mas profundamente transformador. Ao registrar o que sentimos e pensamos, organizamos o mundo por dentro e damos forma àquilo que, muitas vezes, não cabe em palavras faladas.

Num tempo dominado por telas, algoritmos e mensagens instantâneas, retomar o hábito da escrita à mão é quase um ato de resistência. O gesto de segurar uma caneta, de ver as palavras surgirem no papel, devolve-nos o ritmo da pausa e o contato com o que é essencial. Cada linha escrita à mão é também uma forma de presença — contra a pressa, contra o esquecimento, contra o ruído.

Por isso, continuo acreditando: seja por meio do diário ou da literatura, a escrita é, no fundo, uma maneira de existir com mais consciência, de transformar a vida em linguagem e, quem sabe, encontrar sentido nas entrelinhas de nós mesmos.

Larissa O’Hara

Mestra e Drª em Letras

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Revisão de Texto e Educação Especial. Professora há mais de 15 anos, atuou em diversas instituições e orientou centenas de alunos na preparação para a redação do Enem. Autora de variados livros. É professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Revisão de Texto e Educação Especial. Professora há mais de 15 anos, atuou em diversas instituições e orientou centenas de alunos na preparação para a redação do Enem. Autora de variados livros. É professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).